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Sobre a Ucrânia, o número de Dunbar e Wittgenstein

Todos são vítimas, ainda que alguns sejam mais vítimas que outros

A Rússia invadiu a Ucrânia. A Rússia está a desenvolver o hábito de invadir outros países, e sempre por motivos obscuros.

Em 2014 a Rússia anexou a Crimeia, depois em 2015 a invadiu a Síria, no que agora parece um ensaio geral para a invasão da Ucrânia.

A tragédia humanitária que agora se desenrola na Ucrânia já teve o seu preâmbulo na Síria, mas talvez com ramificações diferentes, ou seja, no caso dos refugiados Sírios a comunicação social por vezes apresentava algumas notícias sobre as multidões que tinham chegado à Turquia, e depois dos acampamentos de oleados azuis na fronteira entre a Macedónia e a Grécia, e daí por fora ao longo da rota que os refugiados tomaram para chegar à  Alemanha.

Poucos Europeus pareciam particularmente sensibilizados pela onda de miséria que nos assolou esse ano, e esta atitude materializou-se no ato de má forma da jornalista húngara Petra László, que deu um pontapé numa rapariguita, e depois fez tropeçar um homem que tinha uma criança ao colo. O fito talvez não fosse causar dano físico, mas sim humilhar e deixar dano moral, talvez marcar algo para que as palavras não chegassem.

Por outro lado, nada parecido se está a observar em relação aos refugiados da Ucrânia que agora começaram a passar para a Polónia, Hungria, Roménia e depois para o resto da Europa.

Só por curiosidade, vejamos a seguinte tabela:

E da qual se podem fazer as seguintes observações:

  • Síria
    • 63% da população da Síria está refugiada fora do seu País (a maioria na Turquia)
    • Portugal aceitou 830 refugiados, o que constitui 0.006% do número total de refugiados
  • Ucrânia
    • Correntemente 5% da população está refugiada fora do seu País, é natural que este número aumente significativamente
    • Portugal tem 100.000 emigrantes Ucranianos, mesmo se só metade desta população trouxesse um familiar refugiado para o País, isso corresponderia a 50.000 refugiados, ou seja – aos números actuais – 0.1% da totalidade da população refugiada

Ou seja:

Portugal está, no mínimo dos mínimos, disposto a aceitar dez vezes mais refugiados da Ucrânia do que aceitou da Síria, e a Síria tem mais de metade da sua população refugiada noutros países.

Ambos os países foram vítimas das inclinações bélicas de Putin, ambas populações sofrem… só que estamos mais inclinados em simpatizar com o sofrimento de uns do que dos outros.

Dura lex, sed lex e o número de Dunbar

Será que somos assim tão frios que ignoramos tão cruamente a miséria de uma população, enquanto nos mostramos tão entusiastas em ajudar uma outra?

A resposta é que a nossa postura talvez tenha menos a ver com o nosso discernimento e mais com a nossa constituição neurológica.

Seguindo uma série de estudos que estabeleciam uma correlação entre o volume do neocórtex de primatas e o tamanho do seu grupo social, em 1992 Dunbar, no Reino Unido, estabeleceu que o número máximo de um grupo de humanos é aproximadamente 150 indivíduos.  Este número é confirmado pelo censo a diversas tribos pelo mundo fora.

Claro que como tudo o que tem a ver com seres vivos, este número não é absoluto, e é óbvio que há sociedades com bem mais que 150 indivíduos. O que acontece é que estas sociedades se mantêm coesas pela aplicação de leis, regras e rituais.

Ainda assim, o que é de notar é que o limite do tamanho do grupo humano típico parece codificado ou limitado pela nossa fisiologia, ou seja, não somos tribais por necessidade ou inclinação mas sim por destino biológico, e é este destino que nos leva a fragmentar a sociedade em grupos cada vez menores, em províncias ou estados, e estes em regiões, condados, ou distritos, e por aí fora até termos as cidades divididas em bairros. Igualmente, o que é importante não é ser fã do Sporting ou do Benfica, mas do clube de bairro afiliado ao Sporting ou ao Benfica.

Uma consequência desta limitação é que temos que criar regras que constrinjam a filiação no nosso grupo, é assim que nos parece mais natural aceitar alguém que se pareça conosco física e mentalmente, do que uma pessoa com aparência e disposição diferentes das nossas.

O Ucranianos são pálidos, cristãos e europeus, e cada uma destes atributos soma-lhes pontos na lotaria que lhes abre as nossas portas e corações. Os Sírios, por outro lado, tiveram o infortúnio não se parecerem lá muito conosco.

Na busca de justificações para o nosso comportamento mais repreensível, podemos ficar descansados ao pensar que o nosso racismo e incúria são tendências inatas e naturais, e que para os ultrapassarmos, teremos que transcender a nossa fisiologia.

Putin e o xadrez de Wittgenstein

Na suas Investigações Filosóficas Wittgenstein explora não a natureza da linguagem, mas também o seu impacto em moldar a nossa realidade. Alguns dos seus principais postulados referem o facto de nada ter sentido só por si, que a existência depende de inter-relações, e que a apreensão do sentido da linguagem – e em última instância da realidade – só é possível entre interlocutores que consigam interpretar um código comum. Um exemplo que ele dá, e que explica isto tudo com relativa elegância, é o de uma peça de xadrez: só por si, a peça não faz qualquer sentido, a peça só tem significado no contexto de um jogo, e o jogo só faz sentido quando é jogado por duas pessoas que saibam as suas regras.

Se estabelecermos uma equivalência entre a peça de xadrez e a Ucrânia, e considerarmos que Putin e o Ocidente são os jogadores, caímos na tentação de pensar que a guerra é a mensagem que dá sentido a algo, ou que Putin usa para comunicar algum significado que está para além da nossa compreensão.

O que se passa não é que Putin e o Ocidente estejam a seguir diferentes regras de jogo e, como tal, não se consigam entender, mas sim que Ocidente pensa que a invasão é uma mensagem, quando de facto esta guerra não dá sentido a nada, a guerra é o significado… é uma mensagem permanente.

Adelino de Almeida
Março, 2022

Fotos de Manuel Rosário

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Escrito por

Nasceu e cresceu em Lisboa, doutorou-se em Engenharia de Estruturas na University of Colorado at Boulder, e depois de décadas de uma carreira peripatética em consultoria de gestão, tenta agora reinventar-se como escritor e tem para publicação a sua primeira novela, The Sublime Eucharist of Alfred Packer.

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