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Mais morais e imorais

Mais morais e imorais (ou a autodestruição do capitalismo)

• Num mundo em que as grandes firmas e multinacionais deixaram de pagar impostos, as administrações locais fazem tudo para criar empregos. Para atrair o negócio da Amazon, a municipalidade de Chicago ofereceu àquela firma a totalidade do dinheiro dos impostos que em condições normais cobraria aos trabalhadores, no valor de 1.3 biliões de dólares. Os empregados continuam a pagar alcavalas mas a cidade abdica dos rendimentos, que noutras circunstâncias seriam gastos em escolas, infrastrutura, serviços de saúde, etc.
E Chula Vista na Califórnia sugere oferecer terrenos no valor de 100 M de dólares, junto com uma isenção de impostos sobre o imobiliário durante 30 anos no valor de 300 M de dólares.
A Amazon não paga impostos, recebe impostos.

• Aqui há cinco anos, o enorme banco HSBC foi apanhado a lavar dinheiro dos gangsters da droga mexicanos. Condenado a pagar multa de 1.9 biliões de dólares, ninguém foi preso. E nem a multa pagaram! Numa pequena notícia no Economist em Dezembro, soube que foram entretanto perdoados porque se têm portado bem e deixaram de branquear dinheiro.

• Costumava ser assim:
Perante evidência de possível crime, o juiz emitia um mandato de busca, permitindo à polícia revistar domicílios, automóveis e propriedades, que de qualquer maneira pudessem estar relacionados com o caso.
Isso era dantes.
Agora a polícia toma a iniciativa da busca, confiscando o que de valor encontre a seu belo prazer. Chama-se Civil Forfeiture. Não é preciso mandato do juiz. Declarando a possibilidade de esses bens poderem ser de origem ilícita, apreendem o que querem, deixando à vítima a tarefa de provar a origem legal dos mesmos. Com pretextos inventados, revistam o carro de uma família de mexicanos a caminho da fronteira. Todo o dinheiro é apreendido. A família em questão, para recuperar o montante, gastaria mais em advogados e tempo, do que o valor do dinheiro confiscado, de maneira que lá seguem o resto da viagem sem cheta. E com esses fundos, a esquadra lá da área cobre as despesas correntes.
Se as quantias numa conta à ordem num banco forem julgadas “excessivas” pelo IRS (Internal Revenue Service) ou se os padrões de depósitos/levantamentos suscitarem dúvidas, serão apreendidas até o titular da conta provar que as origens dos fundos são legítimas. O dono de um restaurante pobretanas, todos os dias depositava os balanços, num banco, em frente do outro lado da rua. Assim, poupava o seguro contra roubo, no restaurante. Foi confiscado. Movimento suspeito de dinheiro!
Em 2014 os prejuízos resultantes de toda a espécie de roubos e assaltos à propriedade nos EUA somaram 3.5 biliões de dólares, segundo estatísticas da polícia. No mesmo ano, com a Civil Forfeiture, as autoridades tiveram 5 biliões de dólares de proventos.

• O tratamento completo com o medicamento Epsylon custava 100 dólares. O doente pagava 10% de comparticipação (copay 10 dólares) e o Medicare 90% (90 dólares).
O fabricante aumentou o preço para mil dólares. Graças ao intenso lobbying da indústria farmacêutica junto do governo, pôde fazê-lo e o Medicare, complacente, pagará então 900 dólares em vez de 90. Mas agora há um problema. Dez por cento de mil são cem, e os doentinhos são pobres, não têm cem dólares para pagar a comparticipação. Não há problema. A companhia farmacêutica generosamente cobrirá os cem dólares da parte do doente.
E quando o médico na consulta receita um genérico para poupar dinheiro ao Medicare, o doente exige o Epsylon porque com o Epsylon não paga nada na comparticipação!

• A possibilidade de o devedor individual poder abrir falência e ter as dívidas perdoadas, foi um melhoramento introduzido há anos e que constitui a única saída para milhares de famílias encalacradas com dívidas impagáveis pelos mais variados motivos (o mais frequente são despesas com a saúde).
A única excepção são os Student Loans. Centenas de milhares devem no agregado mais do que 1 trilião e meio de dólares. Com a impossibilidade de arranjar empregos melhores do que o ordenado mínimo, muitos ficavam em casa. Tudo o que iriam auferir com o trabalho, seria desviado na totalidade para pagamento da dívida.
Não mais. Agora, se ficarem em casa, terão a carta de condução confiscada. Num país sem transportes públicos eficazes, isto equivale a detenção domiciliária e desemprego para sempre.
No século XIX havia a prisão dos devedores…

• Batem à porta de noite, depois do jantar, que é quando há mais probabilidade de encontrar a família reunida. São o pessoal da ACS ( Administration for Children Services). Vêm à procura de indícios ou sinais de violência, incúria ou negligência no tratamento da miudagem por parte de quem quer que tome conta deles, lá em casa. Respondem a uma denúncia (ex namorado, vizinho mal intencionado, ou mesmo um dos miúdos). A vítima não tem acesso ao nome do denunciante. Entram, e exigem examinar toda a criançada sem roupa, a ver se há sinais de violência. Metem o nariz em tudo, frigorífico, gavetas, onde quer que se possa esconder drogas. Têm o poder de arrastar com eles os miúdos, nessa mesma noite, numa berraria, para um asilo temporário até que um lar adoptivo seja encontrado.
Aqui há anos uma doente minha tinha a cargo três filhos de quem tomava conta sozinha, desde a desaparecimento do marido. Entre dois empregos e a administração do lar, andava extenuada e de nervos em franja. Os miúdos insubordinados, a miúda de quinze anos a vestir-se de “pega” e a chegar tarde a casa, levavam-na a usar métodos rigorosos que envolviam umas sovas periódicas nos miúdos, e a proibir a miúda de sair do quarto por dois dias seguidos, para a separar das más companhias da rua.
Mas a ACS recebeu uma denúncia. Foram lá a casa. Perguntaram aos miúdos se a mãe lhes batia. Que sim. E a miúda fechada no quarto? Também. Sequestro!
A mulher ficou sozinha e os miúdos mandados para lares adoptivos.
E eu na consulta, em frente a uma sombra humana. Não abri a boca. Receitei o que ela queria e deixei-a sair. E ela, gentilmente desapareceu, nunca mais a vi.

Mas sejamos optimistas. Em todo o mundo a economia está a crescer.
E quando a bolha rebentar o Elon Musk leva-nos para Marte.

José Luís Vaz Carneiro
Tucson, Dezembro 2017

Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

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Escrito por

Curso em Medicina FML 1975.  Clínica Geral em África, 3 anos. Residência em Medicina EUA, Mount Sinai School of Medicine, Board certified. Hospitalista por 20 anos em hospitais dos EUA, reformado. Professor Agregado de Medicina, ano lectivo 1998 Yale University. Curso de Finanças e Banca Prof Perry Mehrling. Hobbies~Guitarra Clássica, Economia, História, Arte, etc

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