De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Ainda me restam as noites

Depois de muito procurar e juntos os trocos todos, comprei uma casa.
Casas miseráveis a preço de palácios!
Valerá a pena, logo eu que só quero mesmo é acabar de viver?
E depois nunca fui boa em projectos e execuções A minha especialidade é mais vender as pratas e as louças que herdei.

Costumava dizer-se «quem não tem competência, não se estabelece». Eu não tenho nenhuma competência, mas tive que me estabelecer.

E é tão caro viver!

Comprei uma casinha, muito pequena, a uma senhora de idade. Já estava muito velha para viver sozinha, tinha família na província e vendeu a casa para pagar o lar “na terra”.
Tinha um letreiro na porta, que dizia “Julinha – Modista de Alta-Costura”.
«A Julinha era a minha falecida mãezinha, era a modista mais conhecida de Campo de Ourique. Não havia ninguém que cortasse como ela! Tínhamos a clientela mais fina de Lisboa».

Entrei numa salinha onde tudo parecia uma relíquia. Uma cadeira capitonê rosa velho, um sofá de veludo verde tão desbotado, que por ali passavam todas as cores do Outono. Nas cortinas de chintz, as flores eram mais desbotadas ainda. No meio, uma mesa em mármore cheia de revistas de moda. Quando me aproximei, verifiquei que eram todas dos anos setenta e sessenta! ´

«Ó Renato, sai-me daí, quantas vezes já te disse para não ires para cima dessa cadeira? Quem ma deu já não me dá outra. Foi a Marquesa de Lavradio, que Deus tenha. Renato, tem-me cuidado com essa jarrinha mandarim, é para conservar…, tu percebes o que eu te quero dizer, não sejas fingido…foi a S. D. Isabel Mello Breyner, coitadinha, que ma deu um dia…» E continuava a falar com o gato Renato, o seu grande interlocutor, e ia apontando-lhe sucessivos defeitos de carácter.

Lá fiquei eu com a casinha de costureira.
A minha primeira casa aos setenta e quatro anos!

Abominei as coisas que faziam sentido. Quis uma verdade inventada.
Perdi-me na vida.
Na solidão, encontrei a liberdade. Quem não se perde, não conhece a liberdade.
Como usar a liberdade? Eu e minha liberdade que não sei usar…

Eu sou solitária, é bom ser solitário, pois a solidão é difícil. E tenho que me agarrar ao que é difícil. Tudo o que vive se apoia no que é difícil.
Quero ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer escondida do mundo.

O futuro não me ama, não me quer. Haverá outras pessoas, no futuro, que não eu, mas que vão agir como eu, vai-lhes acontecer o mesmo que a mim, tudo mais sofisticado, mas morrerão como eu, procurarão nos outros uma fuga de si, como eu procurei.

Esta noite, estou só, face a tanto abismo.

Virá a morte, que não é senão uma solidão conseguida, inteira, absoluta. É o fim dos conflitos e dos mal-entendidos. É o regresso à verdade das coisas, o seu desfecho.
O que temo é a resistência do corpo. A decadência. A dor que rói a carne.
E no que toca a vida, a única coisa que podemos fazer, é gastá-la.

Mas há a vida interior. Alguma coisa cá dentro que resiste.
Encontrei dentro de mim, uma parte que os outros não conseguem atingir, nem profanar. Um abismo onde a liberdade é possível.
Julgo que esta vida interior é a minha salvação e só depende de mim perdê-la ou conservá-la.

Mas ainda me restam as noites. E os ventos que uivam, abanam as árvores e levantam a poeira das terras. E a lua, a Lua cheia.

As crianças ainda são como quando eu era criança, igualmente tristes e contentes.
Quando penso na minha infância, vivo de novo entre elas, entre as crianças solitárias.

Manuela Carona
Maio, 2022

Fotos de Manuel Rosário

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Escrito por

Actriz, nasceu em 1947, natural do Porto, vive em Alfama

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Últimos comentários
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    Excelente!

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      Muito obrigado Ze Luis. Fico contente que tenhas gostado. Bs para ti e Sofia

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    Texto magnífico,de quem consegue soltar a alma e dá asas á liberdade , sem barreiras e limites.
    Encantou-me Manuela Carona

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      Muito obrigado.

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    Manuela achei lindíssimo o que li e revejo-me em muitas coisas que dizes .Espero que continues a tua luta com a cabeça tao arrumada como me deste a perceber.Obrigado um Beijo.

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      Fico contente wue tenhas gostado. Bs para ti e sofia. Abraço

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    Que seja feliz na nova casa. O espaço fazemo-lo ao nosso gosto.

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    “Abominei as coisas que faziam sentido,,,,,, ”

    Lindo texto . Identifico-me. Obrigada

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      Muito obrigado.

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    O que me chateia no Fernando Pessoa, é o Português sublime e arrebatante ao serviço dum solipsismo sentimental e xaroposo, que não sou capaz de digerir.
    Compare-se com a poesia de Camões.
    Fico-me por aqui.
    Li três vezes este artigo da Manuela Carona. A verve e fluidez do discurso faz da Manuela o meu autor favorito. Quizera eu ser capaz de tal talento. Ela consegue escrever com graça acerca do gato da vizinha que dormita ao sol, no telhado ao lado. É a vitória da Forma sobre o Conteúdo. É a língua Portuguesa destilada e pura.
    Não sei se há uma compilação em livro dos escritos dela.
    Obrigado Manuela.

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      Oh, muito obrigado. Fico mesmo admirada com as suas palavras! Não, não tenho nada publicado. Faço estes ” desabafos” no outramaneira, nunca escrevi noutro lado. Gostava… Estas partilhas sobre as minhas andanças têm me dado muito jeito. Este espaço., logo os seus leitores, tem sido o amigo certo das horas incertas…Obrigado.

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    Gostei muito deste teu texto/desabafo !!!
    Beijinhos e uma boa vida na casinha da Julinha !

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      Obrigado querida Tatao, abraço

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    tão bonito Manuela

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    Lindo Manuela. Gostei muito do que li. Saudades dos tempos em que nos encontrávamos em Matosinhos a ver os nossos filhos brincar e correr. Enquanto isso, nós tomavamos o nosso chá, no meio de tanta gargalhada, porque a tua Mãe, Avó e Tia, tinham um humor delicioso.
    Beijinhos enormes.

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      Obrigado. Abraço

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    FABULOSO querida Manuela!!