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Azul azulejo

Azul azulejo

Longos e misteriosos dias da minha infância – cheios de perguntar, de inventar e de ouvir, de olhar de perto e descobrir surpresas – foram passados no prédio de azulejos onde vivia a minha Avó.
A minha Avó dizia assim: “Lá vem o eléctrico das seis…”
E ouvíamos o seu rodar vagaroso a caminho do Campo Grande. O eléctrico era o único acontecimento sonoro da Avenida da República daquele tempo, em que viver num terceiro andar era morar nas alturas e acenar a quem passava no eléctrico aberto um passatempo das crianças. Lá de cima víamos tudo: as famílias pomposas que se dirigiam ao jardim do Campo Grande em passeios domingueiros com fotografia à la minute, e a carroça com bilhas de água de Caneças que tinham um papel verde encerado e um elástico a fechar o gargalo de rolha larga.
Gostávamos de ir à rua e parar na mercearia do sr. Andrade, esquina com Entre-Campos, a meditar um pouco diante da grande caixa branca dos esquimaux, sorvetes cujo sabor na memória nem a CEE inteira e consumista consegue apagar.
À saída, impressionava-me a estátua da Guerra Peninsular, com homens nus e mulheres vestidas e a grande águia que metia respeito. E depois corria para casa da Avó, o prédio identificável entre mil, todo azul de azulejos.
Aos poucos descobri que por toda a Lisboa os azulejos, tão associados aos meus primeiros afectos, nos lançavam olhares nem sempre devolvidos. Contavam-nos histórias que fui aprendendo a ler, ou simplesmente nos sorriam em painéis como rendas ou bordados, ou tapetes brilhantes onde apetecia passar a mão e pasmar para os azuis, os amarelos, os verdes mais raros, os sépias inimitáveis.
Entrar na Madre de Deus é ter duma vez só todo esse panorama de uma Lisboa antiga e moderna ao alcance do coração e dos olhos. Fazer um parêntesis de frescura naqueles claustros que só quem lá está percebe não haver adjectivo que os defina. Do século XVI ao século XX é passear a vista e deixar correr o encantamento: os relevados, os alicatados, os enxaquetados, os corda-seca, os de aresta…
As cores, os desenhos, o prazer de ser belo e de se mostrar, a certeza de ter cumprido ao longo dos séculos, a missão de regalar os olhos. E como Lisboa se engalanou de azul e branco, e como foi ganhando amarelos quando se esqueceu da moda Ming aprendida nas andanças do Oriente, e como no século XX os pintores recuperaram o gosto de enfeitar a cidade!…
Lá está a Lisboa do princípio do século XVIII, num imenso painel anterior ao terramoto de 1755, orgulhosa das suas ruas e igrejas, vista do rio, a namorar caravelas. Lá está a vida e a glória do sr. Joaquim Carneiro, chapeleiro de seu ofício, que nos conta, na mais antiga “história aos quadradinhos” que conheço, como de pastor descalço se transformou em abastado comerciante, por zelo e argúcia em seu negócio. Lá está o ar de graça desta cidade que borda o seu chão e embeleza os seus muros.
As nossas ruas merecem que nelas se trave o passo e se contemple, de nariz no ar, o que por aí está de maravilha: paredes vestidas de gala com o ar mais natural do mundo, tal como o Tejo corre e as pombas revoam.
É por estas e outras que Lisboa azuleja no meu coração quando ando longe, por fora dela, ou por dentro de mim.

Rosa Lobato de Faria

Este conto faz parte de um conjunto de textos dispersos e inéditos, publicados pela Parténon edições, em 2015, com o título Pedra Rara.

Há locais que exercem sobre nós uma atracção especial e outros, pelo contrário, aos quais não temos qualquer vontade de voltar. As recordações que temos de certos sítios e a relação que com eles estabelecemos é feita de um conjunto de sentimentos e de sensações complexas e contraditórias. Quando nos

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