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Lisboa, a luz e os azulejos

A pele é o nosso revestimento. É a capa através da qual os outros nos vêem e é, por assim dizer, o nosso cartão de visita. Pode ser clara ou escura, seca ou brilhante. Pode estar estragada, deslavada, enrugada ou esburacada. Mas também pode estar pintada, tatuada ou restaurada. O mesmo se pode dizer da pele das cidades e a pele de Lisboa é isto tudo ao mesmo tempo.

Lisboa tem cerca de 3000 edifícios revestidos a azulejo, com mais de 400 padrões diferentes, monocromáticos, policromos, lisos, relevados, com motivos geométricos, vegetalistas, de inspiração arte-nova, etc.

Apesar da rápida degradação que se tem verificado e do vandalismo gratuito e habitual a que estão sujeitos, alguns destes edifícios vão conseguindo resistir à fúria demolidora da especulação imobiliária, contribuindo para dar à paisagem urbana de Lisboa características únicas de luminosidade e de cor.

Para além de constituir um material de revestimento barato e de fácil manutenção, que se mantém naturalmente lavado pela água da chuva, os azulejos destas fachadas reflectem os vários cambiantes da luz inconfundível de Lisboa. É por isso que muitas fachadas adquirem aspectos completamente diferentes num dia de sol aberto em que a intensa luminosidade reduz o contraste entre as cores, ou num dia enevoado em que a luz rasante realça os pormenores dos desenhos e as irregularidades da superfície do azulejo.

Por outro lado, é de realçar o facto dos motivos decorativos terem leituras muito diferentes quando vistos ao longe e ao perto. Se olharmos de longe para qualquer fachada azulejada, apenas conseguimos ver os tons das cores dominantes e as linhas de força dos padrões que introduzem novos ritmos na estrutura das fachadas, estabelecendo frequentemente um contra-ponto com os elementos ortogonais da arquitectura. Só à medida que nos aproximamos é que a percepção de conjunto destas linhas se vai progressivamente esbatendo e vão surgindo com mais evidência os detalhes insuspeitos dos desenhos e do conjunto da paleta de cores.

Para além disso, a utilização de frisos e cercaduras a contornar os vãos das portas e janelas, realça a transição entre os vários materiais da fachada e reforça a integração do azulejo com os restantes elementos arquitectónicos.

Infelizmente, talvez por serem de produção semi-industrial, terem desenhos repetitivos (padrões) e não apresentarem a diversidade da azulejaria do século XVII nem a monumentalidade dos painéis do século XVIII, os azulejos de fachada foram, até há bem pouco tempo, considerados como o parente pobre da azulejaria portuguesa. Aplicados no exterior dos edifícios de muitas das nossas vilas e cidades, durante um período que durou sensivelmente 70 anos (1850 a 1920), os azulejos de fachada, depois de um largo período de declínio, têm vindo progressivamente a ser recuperados por muitos arquitectos que, ao optarem por este tipo de revestimento, contribuem de maneira decisiva para manter esta tradição e preservar um património único, desprezado durante décadas.

A pele de Lisboa todos os dias é diferente e todos os dias nos espanta. Basta olhar para ela de outra maneira.

Isabel Almasqué
Janeiro, 2020

Fotos de Isabel Almasqué

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Escrito por

Isabel Almasqué, Médica oftalmologista. Ex-Chefe de Serviço de Oftalmologia do Hospital dos Capuchos. Ex-Secretária-geral da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia. Co-autora de vários livros sobre azulejaria portuguesa.

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Últimos comentários
  • Magnifico texto, e que colecção maravilhosa de fotografias…..espero que ainda estejam nas paredes de onde foram estudados. Recuperar a tradição é fundamental, por arquitectos de bom gosto…

  • Obrigada Yvette. Infelizmente algumas destas casas não resistiram aos “caterpillars” e já não existem. Em poucos anos, o azulejo de fachada passou de “pobre diabo” a objecto de consumo para turistas e mesmo a ter honras de teses académicas. Não há fome que não dê em fartura… Felizmente, pouco a pouco, tem vindo a ser recuperado e renovado por alguns arquitectos em obras de grande qualidade. De vez em quando, há quem acorde do sono letárgico que nos embala a todos.

  • Eça falava do grande choque eléctrico de que a cidade precisava….

  • O nosso azulejo empresta um aspecto visual único e emocional. O ressurgimento da azulejaria tarda. É mais caro que a robbialac mas é eterno e belíssimo e nós temos todo o know how da fabricação.
    Sé há que evitar o artista decorador a querer deixar obra, evitar a taveirada. A contensão e sobriedade do museu Gulbenkian é o que o faz um edifício sublime.
    Viva a azulejaria.