De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

A ribeira do espanto

O jipe parou com um solavanco levantando à nossa volta uma nuvem de poeira. Fôra só de uma escassa centena de metros esta jornada, desde o trapiche do Domingos Santos até aqui. Lá sim, no trapiche, é que eu me entusiasmara e me fartara de tirar fotografias. E fotografei tudo o que pude enquanto tive luz, tudo, desde o engenho – saído há já muitos anos da Fundição de Massarelos – com os seus cilindros verticais entre os quais a cana sacarina era espremida da sua doce seiva, até aos pachorrentos burros que, no seu passeio de roda, arrastando a grossa e escura trave, faziam girar a engrenagem.

Foto que não perdi foi a do moço que ia metendo a cana entre os cilindros, nem a do outro que, do lado oposto, separava o touco do mouco que iria alimentar o gado. Virei-me depois para o alambique onde fervia a calda que fermentara durante a semana, soltando fumo branco e cheiro doce. A palha de touco, seca, ia ardendo em chamas que, entre as negras paredes de pedra, lambiam o cobre do caldeirão, enquanto da ponta do longo tubo aninhado numa calha de lata e arrefecido por um fiozinho de água corrente, pingava em transparência a aguardente recém destilada.

Quando a minha máquina parou e eu voltei para a roda dos meus companheiros, o Rito Melo estendeu-me um púcaro e, de uma lata que em tempos fôra de óleo Shell, deitou-me nele a calda da cana espremida de fresco. Na outra mão já uma garrafa da forte aguardente de cana – o grogue, como por cá lhe chamam, – me aguardava. Quando o olhei o Rito Melo sorria um sorriso largo, misto de divertimento e compreensão. Ele nascera naquelas paragens – ali mais acima, na casa branca ao pé da árvore grande – e trazia nos olhos todas estas pedras e gentes, mas compreendia que para os meus olhos, que traziam, lá no fundo, longes paisagens de cimento e de poeira, tudo aquilo fosse novo.

O Jipe parara e nós saímos.

– Vamos ver a minha tia, foi ela que me criou, disse o Rito que levava a sério a missão de ser meu guia.

Tentei ver bem todo o local. Estávamos no leito seco de uma ribeira, a do Duque, onde a água há já muito secara. “Quando eu era pequeno tudo isto era uma beleza, mais verde, sabe!? Aqueles muros de pedra, ali, eram para suster a água… Mas agora está tudo tão seco… Há muitos anos que não chove”, ia dizendo o Rito enquanto esticava o queixo para apontar.

De facto as culturas e as árvores, há muito esquecidas do sabor da água, eram de um tom verde seco amarelado, mas, numa teimosia de sobrevivência e esperança de melhores dias, lá se iam agarrando ao chão da ribeira e subindo até junto das altas paredes basálticas que, abruptas e verticais, indicavam ter sido há incontáveis séculos, esta garganta escavada pelas torrentes de lava escaldante, que da cratera do aparelho vulcânico correram para o mar.

À minha frente encostada à rocha, uma casa, alta de três andares, acompanhava a esquina rochosa a que a haviam amparado ” – É a casa do Sr. Manuel de Zita, tem uma boa loja de comércio geral, “explicou-me o engenheiro Pelópidas, irmão do Rito Melo e que tinha vindo a conduzir o jipe, “A casa da nossa tia é ali em cima atrás desta”.

Ao subirmos o Manuel do Zita veio ter connosco. Era um homem alto e magro, de pele escura e óculos ainda mais, simpático e hospitaleiro como todo o caboverdeano, sóbrio nos gestos e poupado nas palavras. “Vão lá acima, disse, e à vinda entrem”.

Veio apertar-me a mão enquanto, do parapeito, eu lançava ainda mais uma vista de olhos ao trapiche e ao alambique onde o fogo ainda ardia e de onde o fumo ainda saía. Admirei a técnica que em pouco diferia da dos engenhos que nos anos de quinhentos os portugueses haviam trazido: “- Aquele trapiche é um espanto”, foi o meu cumprimento.

O Zita sorriu por detrás dos óculos. Sorria ainda quando o engenheiro Pelópidas me segurou no braço e indicou um homem. Chamou-o e apontando para o Rito Melo disse-lhe em crioulo que o Rito tinha quarenta e quatro anos de idade e perguntou quantos dias tinha ele já vivido. “ – Sabe, segredou-me o Pelópidas, aqui o Ambrósio é um verdadeiro computador! Faz contas incríveis, de cabeça. Vai ver.”

O Rito Melo, que rapara de uma Bic, fazia contas na palma da mão quando o computador com pernas, empertigando-se muito, disse quantos dias ele tinha. O Rito atirou-lhe um sorriso de vitória: “ – Não senhor! Enganou-se na casa dos milhares; são mil a mais!”

“ – Não pode”, fez o outro abanando a cabeça com o vigor da negação e fechando os olhos para reforçar a teimosia, “mim está certo! “E já o de Zita acudia com a máquina de calcular para verificar que o Rito Melo se tinha enganado na conta.

Cá por mim estava espantado, mas, como que querendo aumentar o meu espanto, perguntaram ao Ambrósio quantas horas, minutos e segundos é que aqueles dias todos eram. Ele afastou-se para se concentrar, pé descalço, calça rota e boné de napa que um dia fora clara, enquanto os meus companheiros se afadigavam nas contas da máquina de calcular, escrevinhando os parciais num papel de embrulho, já que os totais excediam a capacidade da calculadora.

O Ambrósio voltou franzindo a pele escura num sorriso branco de dentes. Voltou e começou a vomitar números e números com milhares e milhões e biliões, e tudo, mas mesmo tudo, estava certo! Impecável!

– “Foi na escola que aprendeu tudo isso! ? – perguntei, mal contendo o espanto e a admiração. Que não, que era completamente analfabeto, que bem o tinham tentado lá levar mas que desistira porque cansava mesmo a cabeça aprender coisas.

Eu ainda insisti se ele ao menos conhecia os números se os visse escritos. “ – Nem muito, nem pouco, nem nada! “ – respondeu ele sorridente e vaidoso.

Para mim era de mais: Perdido no Atlântico o Arquipélago de Cabo Verde não passa de um pontinho no mapa, onde um dia portugueses puseram os ovos da colonização. Eu viera da Praia, a capital, no Sotavento, até ao Mindelo na ilha de S. Vicente, e nessa manhã atravessara no Ferry Boat para a ilha de S. Antão, a maior e a mais bela das ilhas do Barlavento. Posto que foi em terra o pé, no Porto Novo, levaram-me enlatado em Jipe a conhecer montes e vales, uns secos e verdes outros. Sacudi os ossos pela montanha acima, deslumbrei os olhos por ela abaixo e lá cheguei à Ribeira Grande, ao pé do mar, do outro lado da ilha. Ora como antes eu mostrara interesse em ver um trapiche, tinham-me trazido pelo leito seco até aqui, à Boca da Ribeira do Duque. Mas aqui a Ribeira do Duque estava a cada momento a transformar-se na Ribeira do Meu Espanto.

Espanto, Espanto foi o que me esperava depois de ter sido recebido com sorrisos e côcos pela tia velha do Rito e pela sua companheira cega.

Partiram-se côcos, em púcaros bebeu-se a sua fresca água, comeu-se a polpa, sorriram-se os sorrisos, abraçaram-se as despedidas e desceram-se as escadas. Esperava-nos o Zita.

Entrámos. Sentámo-nos na sala e o dono da casa foi lesto ligar o motor: Fiat Lux! Et Lux facta est! Iluminou-se em luz e em palavras a sala e veio o ponche de cana, feito de grogue, do mel de cana e de limão – o ouro das cozinheiras locais, já que aqui os citrinos escasseiam.

Fez-se silêncio. O Zita levantou-se e foi ate à estante em frente, ergueu um pano e, cercada de bonecos de plástico e de bibelots diversos, apareceu uma televisão a cores! E bem grande.

Levantado que foi outro pano, descobriu-se-lhe ao lado um vídeo tape. O Zita introduziu nele uma cassete e ligou as engenhocas enquanto lá fora o motor tossia electricidade.

E na Ribeira do meu Espanto o Espanto correu em enxurrada quando, ao olhar eu a vi. Lá estava ela, a mão com peçazinha do puzzle e a música, indicativo… do Pai Herói!

A explicação era simples: Lá em Lisboa mãos amigas gravavam a novela todos os dias, mandando depois as cassetes por avião para o Sal e do Sal para S. Vicente. Em S. Vicente há um grupo de “Amigos da Televisão”, que se cotisaram – 100$00 mensais -, e fazem uma emissão experimental, local, passando as cassetes do Pai Herói. Aí são estas gravadas por outras mãos amigas, que têm vídeo, enviadas no Ferry da Arca Verde, por mar, de Mindelo ao Porto Novo, e seguem de carro através da montanha, onde a estrada se esganiça em lanços estreitos, como no Delgadinho da Corda que só tem aí uns três metros e meio de largura, entre desfiladeiros, até à Ribeira Grande. Chegadas à Ribeira Grande, são então as cassetes enviadas ao longo do leito seco da Ribeira Duque até aqui e tudo isto sem que ninguém ganhe nada, nem na compra, nem na venda, nem sequer em gravação.

Agora eu sorria, vencido e convencido à realidade da mistura e do contraste, nesta Ribeira de Espanto que não tem água, mas tem trapiches e burros, alambiques e côcos, analfabetos a fazer contas de cabeça e Pais Heróis, verdadeiramente heróis só pela longa jornada que fazem…

José Manuel C. V. Cosmelli
Mindelo, 1 de Março de 1984

 

Nota: Este manuscrito foi encontrado nos papéis do “pai  Freudenthal “.

A foto do trapiche é de Ingo Wölbern, as outras são de Manuel Rosário e Minnie Freudenthal

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Escrito por

Vive em Malta com a família e dedica-se a leccionar conferências e seminários por esse mundo fora. Cursou hotelaria e jornalismo, tendo colaborado em vários jornais e revistas, foi Consultor de governos de vários países na área do desenvolvimento e do turismo e Reitor de uma universidade em Miami. A escrita, a fotografia, os cavalos e e as causas humanitárias preenchem também a sua vida.

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Últimos comentários
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    Muto, muito bom

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    Lindo. Lindo. Então a historia do Pai Herói…delicioso

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    Sou o José Cosmelli, autor deste conto publicado agora no meu livro ” Contos de Viagem ” Edição da Chiado Books Portugal.
    Caso queira contactar-me terei prazer nesse contacto. Na verdade não tenho 97 anos, tenho muito menos anos…