De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...

Ecos do meu Pousio – Trio Harmonia

Vagos, Dia da Mãe e restante Maio de 2020

Sempre tive um grande fascínio pelo fenómeno da maternidade enquanto origem da multiplicação da vida, que começa numa escala ínfima, desenvolve-se em progressão exponencial e complexidade crescente até à maturidade desejável, o que pressupõe uma organização prodigiosa e uma cooperação muito eficiente. É assim para todas as formas de existência, fauna, flora e humanidade que pulsa e se mexe (para não plagiar dizendo que “pula e avança”). A fórmula que ilustra a necessidade de garantir a afirmação da vida, a chamada “perpetuação das espécies” é objectiva mas peca por ser fria e redutora, determinista – entre os seres humanos, não contempla o livre-arbítrio, as vontades e as escolhas, o desejo e as emoções, o entusiasmo, o receio e, sobretudo, as circunstâncias que proporcionam, ou não, várias modalidades possíveis de realização do prazer de criar e ser criatura, cuidar e ser cuidado…

Fui tia muito cedo, aos 14 anos – para trás já tinham ficado os bebés chorões que vestia e despia, com quem falava, e que embalava… agora eram de carne e osso, com áudio e uma aparente imprevisibilidade que eu achava desconcertante… Assim, gastei algumas vezes a semanada a comprar fraldas e comecei a fazer baby-sitting informal, para recuperar ou arredondar o argent de poche, primeiro a alguns dos sobrinh@s que moravam mais perto e cujos pais recrutavam os nossos préstimos, depois aos filhos dos pais que recorriam às agências de serviços onde me inscrevi com o mesmo objectivo de reforço orçamental…Uma experiência cumulativa que me proporcionou momentos maravilhosos dessa descoberta extraordinária que é a da vida em evolução, tão rápida, e que me permitiu desenvolver um traquejo que poderia ter-me preparado para, chegado o momento sustentável, assumir com alegria essa escolha – mas, quando o meu ‘relógio biológico’ soou, aos 30 anos, não havia, no meu horizonte próximo, um pai à altura e optei, isso sim, por não fazer aquilo a que, na altura, se chamava ‘produção independente’, pelo que não tive a oportunidade de embarcar nessa aventura, que eu só admitia se fosse partilhada entre iguais… Depois de ter passado anos da minha juventude a afirmar que trazer ao mundo uma criança era uma enorme responsabilidade num planeta tão desigual em recursos e escrúpulos, o que incluía o receio nem sempre confesso da minha eventual incompetência, transpus o meu limiar de fertilidade sem ter sentido o misto de alegria e apreensão que acompanha, na primeira pessoa, a transformação do corpo feminino e o seu desdobramento para acomodar um novo ser humano – hoje, sei que poderia ter sido uma boa mãe e, acima de tudo, ter-me-ia empenhado para que o meu rebento viesse a ser, acima de tudo e tanto quanto dependesse de mim, uma boa pessoa, pois essas nunca são demasiadas…

Hoje em dia, o meu conjunto misto de onze sobrinhos, três afilhados e já seis sobrinhos-netos, com toda a sua diversidade e variável interacção, ajuda-me a canalizar o sentido maternal subsistente, e a aceitar a minha escolha – mesmo
reconhecendo que este período de isolamento forçado, associando-se ao meu pousio deliberado, suscitou em mim mais uma reflexão retrospectiva, considero que essa questão está bem resolvida.

Um acontecimento extraordinário, ocorrido recentemente, contribuiu muito para pacificar as minhas expectativas goradas e, assim, libertar-me para uma vivência de uma natureza diferente, salvaguardadas as devidas proporções: há pouco mais de um ano, a minha Setter irlandesa vermelha foi mãe pela primeira vez e eu tive a grande felicidade de assistir ao parto dos seus filhotes, numa manhã do final de Abril de 2019… Inesquecível é a espantosa desenvoltura com a qual ela soube exactamente o que fazer, a cada nascimento da sua extensa prole: rasgar com cuidado e determinação o ‘embrulho’ de cada rebento, lambê-lo com método para o libertar dessa substância gelatinosa engolindo integralmente cada placenta, e desse modo também estimular as crias, uma a uma, a acordarem para a vida; aceitar com naturalidade a ânsia de mamar de cada cachorro, que procurava instintivamente, de olhos ainda fechados nas primeiras semanas, a melhor e/ou a menos concorrida fonte de leite materno… Enternecida, fui testemunha regular do zelo com que procurou acomodar tod@s, não esquecendo nenhum, tentando não magoar algum ao deitar-se, sempre de ouvido atento aos diversos vagidos do seu coro polifónico de recém-nascidos! Mais adiante, então já rodeada de muitos pares de olhos curiosos e bocas ávidas, com dentinhos afiados como agulhas mas mantendo o mesmo apetite vital, vi-a a aguentar estoicamente, nas suas quatro patas, a sucção dos pequenos que pareciam estar numa festa em regime de ‘bar aberto’, afastando a cortina de franjas ruivas para saciar a sede a qualquer hora, ‘sem relógio nem calendário’ como diz o seu brioso criador: imagens formidáveis que retenho na memória e não me cansei de captar em centenas de fotografias ao longo dos primeiros três meses de vida da sua ninhada…

Estando o seu filhote, já com um ano, lá longe na casa do criador, onde ficou a pedido deste para reforçar o body-building mesmo antes de ser declarada a pandemia, e não podendo ainda ir buscá-lo neste contexto de confinamento prolongado, a minha patuda ruiva anda em regime de ‘dolce far niente’: sente a falta do seu parceiro de brincadeiras e está agora na etapa final do seu cio semestral, que é a mais vulnerável, numa terra onde, lamentavelmente, ainda são muitos os cães ‘vadios’, alguns dos quais vítimas colaterais em plena crise do COVID-19… Assim, as nossas deambulações estão muito mais limitadas mas não abdicamos de as realizar quase todos os dias – para espairecer, arejar, sentir o vento de frente e, nos dias em que sol se atreve a afirmar-se por períodos mais longos, deixar despertar a lagartixa que há em nós, até podermos voltar a ir à praia mais próxima, a da Vagueira, para desatar a correr no longo areal junto ao mar tão bravio quanto fotogénico …

Curiosamente, neste meu actual ‘microcosmo’, vivo rodeada de três mães recentes: cadela, gata e cegonha – o meu ‘Trio Harmonia’ privativo, que me fez lembrar o conjunto original homónimo de admiráveis intérpretes de harmónica, famoso na minha infância e juventude, já que gravaram o seu primeiro 45 rotações (sim, na era do Vinyl) no ano em que nasci e se separaram quando eu tinha vinte anos …

A convivência doméstica é um desafio diário à minha elasticidade, multi-tasking e paciência, mas também convoca a minha capacidade de intervenção atenta e criativa em tempo útil para evitar conflitos: apesar da natureza zen da minha cadela, literalmente uma ‘Miss Flower Power’ que traz as folhas e flores mais pequenas do nosso jardim agarradas às suas melenas ruivas aloiradas, há a questão da antiguidade residente que colide com a territorialidade impositiva da gata, que não tem dono nem tecto mas é aguerrida sobrevivente, e se julga uma Castafiore

A minha protegida felina é caprichosa e ciumenta como qualquer ‘centro de mesa’, o que não a impede de ser uma mãe diligente, sempre atenta à sua ninhada, também de três gatinh@s – esta special guest star está cá em casa num regime cada vez mais aberto mas ainda em ‘pensão completa’, já que sai pela janela da despensa para dar os seus passeios higiénicos e porventura realizar também algo de mais picante; continua muito ciosa da sua descendência biodiversa, recorrendo a um invejável reportório de vocalizos para os chamar, avisar, reunir ou ralhar com eles: com personalidades marcadamente distintas, o trio é composto por uma acelerada preta, um afoito branco e uma arisca tigrada (só agora, neste quase completo segundo mês de vida, é que consegui identificar o sexo destes ‘anjinhos’), tod@s com olhos lindos – cinzentos, azuis e verdes, respectivamente – e sempre muito brincalhões, ainda sem noção dos alfinetes que têm na extremidade das patinhas quando sobem pelas minhas pernas como se eu fosse um coqueiro … Apesar de a mãe insistir em comer (também) a ração deles, mais adequada ao tamanho da boca e aos dentes ainda de leite da sua prole, observá-los a brincarem entre si ou, à vez, com a própria mãe, é uma fonte de muitas alegrias para mim, o que compensa a autêntica trabalheira que me dão em termos logísticos e de gestão de territórios!

O extremoso casal pernalta e bicudo, após um longo choco dedicadamente partilhado por Madame & Monsieur, teve, entretanto, crias em triplicado: certa manhã avistei da cozinha três cabecinhas na extremidade de pescoços ainda sem firmeza, de bico apontado para cima, também elas ansiosas pelas múltiplas refeições do serviço de catering parental, assegurado à vez por ambos; em poucas semanas, a diferença entre a área construída e o espaço útil do ‘condomínio’ foi-se tornando maior: os pais tiveram de remodelar o ‘quarto dos filhos’, indo buscar galhos, desta vez com folhagem, para tornar a camarata mais confortável; com os filhotes a crescerem a olhos vistos, descobri que as asas de grande envergadura das cegonhas não servem ‘a-penas’ para voar: em dias soalheiros, o progenitor de turno vira de manhã as costas para Nascente e à tarde para Poente, entreabrindo as asas em jeito de guarda-sol improvisado, um recurso ambivalente em modalidade familiar porque funciona também como guarda-chuva preto e branco quando desata a chover, sempre para proteger as crias… A ausência de ambos os pais já acontece por curtos períodos, porventura vão lanchar fora em tête-à-tête, medida saudável também entre pássaros monogâmicos… reúnem-se à hora do almoço, quando o sol é mais generoso, e ao serão está sempre um dos adultos, aquele que volta para casa mais cedo após mais um dia de vaivém laborioso – por vezes não resistem a dar uma espreguiçadela para recuperar da vigília nocturna, arriscando-se a perder o equilíbrio já que o ninho está a ficar com lotação esgotada.. fazem-no esticando uma das patas e, simultaneamente, abrindo a asa do mesmo lado (como fazem os cães e os gatos!) e, quando escurece mesmo, embora a luz do candeeiro só se apague de madrugada, preparam-se para mais uma noitada, agora ambos em versão flamingo para deixar espaço aos juvenis que ainda não têm penas suficientes para receberem as primeiras lições de voo…

Todas estas observações e reflexões, neste round, levaram-me, como é dedutível pela azáfama de afazeres cuja descrição abreviei e outros que não incluí aqui, um mês a processar – pelo caminho foram-se acumulando post-it coloridos com ideias e associações, instantâneos, apontamentos e expressões, que fui costurando na cabeça até desenhar o figurino e coser as palavras neste relato virtual que já vai longo.

Estamos tod@s, de algum modo, em ‘terapia ocupacional’ – a tempo inteiro ou parcial, vamos gerindo este turbilhão de notícias, recomendações, receios, surpresas boas ou más, e embora não pareça, nem tudo gira em torno da pandemia que veio desconcertar-nos mas também estimular a nossa criatividade, o que nos permite ‘levantar voo’ – este é o meu, enquanto prossegue o rodopio de andorinhas que voam alegremente como se estivessem a nadar, indiferentes ao céu instável, numa estação cheia de turbulência externa e inquietação interior; os pardais ocuparam a empena visível de um prédio baixo aqui perto, alargando com os bicos os pequenos respiradouros que o isolamento metalizado não tapou: aí fizeram um condomínio de ninhos, para onde se dirigem com provisões ao pôr-do-sol, quando essa superfície prateada se transforma em espelho nacarado sem ter tempo de alcançar tons mais quentes antes de a noite cair e tudo parecer pacificado…

Helena Gubernatis
Outubro, 2020

Fotos de Manuel Rosário

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Poliglota de origem e por vocação, guardei no coração a História da Arte e dediquei-me à Comunicação: acredito no diálogo sem fronteiras, na criatividade humana e na partilha do conhecimento entre iguais, livres e fratern@s; sou uma observadora participante e tenho um sentido de humor inoxidável; gosto de morar perto da água, com cães & gatos, de viajar e de fazer jóias nas horas vagas.

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