De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...

Ecos do meu pousio – Cegonhas em Vagos

Vagos, 20 de Março de 2020, ao anoitecer

Neste dia de Equinócio que assinala o início da Primavera, muito bem-vinda, com uma grande parte do mundo em estado de emergência real ou iminente, decidi recolher-me na biblioteca da minha casa – sou sortuda – para, na companhia dos livros que me alimentam há décadas, comunicar convosco, meus amig@s, partilhando por escrito o que me vai pelos olhos e pela alma, digamos assim…

As nuvens continuam a despejar água, quase ininterruptamente, desde a noite passada – uma cortina líquida que se multiplica, para alguma frustração e muito canine boredom da Gift, a minha adorada Setter irlandesa vermelha que, aos meus pés, acaba de comer uma varejeira já sem vida…

Os dias de chuva são, desde que me lembro e estando a salvo no conforto protector de quatro paredes, uma situação reconfortante e, ao mesmo tempo, uma oportunidade criativa…. Guardo na memória, sorrindo, as manhãs chuvosas de Outono passadas nas primeiras salas de aula que conheci, então aparentemente enormes, do Lycée Français Charles Lepierre, a desenhar o contorno das folhas caídas, que pareciam mãos vegetais espalmadas… Uma prenda dos castanheiros que lá moravam e que largavam, a cada ventania, algumas daquelas bolinhas cheias de picos onde se abrigava a promessa interrompida dos frutos: a mesma família das apetecíveis castanhas que, crescidas e colhidas, nos esperavam à saída, assadas em barro e com brasas de carvão, pelas mãos calejadas e enfarruscadas do vendedor ambulante, cuidadosamente colocadas à dúzia no cartuxo improvisado com uma folha das infinitas Páginas Amarelas…

Irresistivelmente convertida em voyeuse acidental, observo, há semanas, da janela da minha cozinha, a azáfama das cegonhas brancas que, nesta terra dos antepassados da minha metade portuguesa, aqui vivem o ano inteiro, ou quase, graças à praga do lagostim que por cá abunda… O espectáculo começou com um prelúdio coreografado: o bailado da pré-selecção, que chegou a juntar oito delas em vôo colectivo, aos círculos, provavelmente à procura das suas afinidades electivas; seguiu-se-lhe o primeiro acto, já com reservado direito de admissão: a côrte, que se traduziu em pas-de-deux voadores, numa animação de chamamentos amorosos com os seus longos bicos, pernas altas e asas abertas em leque de penas bi-colores: dois terços brancas e o restante a negro, conciliando os extremos do espectro cromático, tudo e nada – aves hoje mais sedentárias que migratórias, que lembram os humanos antigos em traje de gala, com movimentos delicados e elegante casaca…

Esta madrugada lá estavam, determinadas, porventura a dormir em pé, no alto do candeeiro já apagado da rua onde moro. Impermeáveis, vigilantes e estóicas, de guarda ao ninho que continua a ser edificado, literalmente em regime de condomínio, dia após dia, por cada um dos membros deste casal – espécie extraordinária, que se reveza numa gestão equitativa das tarefas próprias do acasalamento: amb@s contribuem para a construção da maternidade exclusiva, trazendo no bico mais raminhos e folhagens para acolchoar o futuro berçário!

De manhã, a habitual azáfama arquitectónica em alternância abranda e voltam a perfilar-se, lado a lado, com os bicos para baixo, em repouso despenteado como numa estampa japonesa, depois de um reencontro celebrado com esse bater-de-bico tão característico, em Dolby Stereo… À tarde, os períodos de ausência são maiores, o que me leva a deduzir que vão à procura de ‘combustível’ e, se calhar, alguma privacidade para namorar…Quando o sol se põe, aterram de novo e ficam em sentido, oferecendo o peito ao vento, e encostam-se provavelmente para beneficiar do somatório da temperatura corporal…

Tenho vindo a assistir, encantada, aos seus rituais de toilette matinal, também com afiados cuidados de reciprocidade, às práticas de acasalamento que compensam a falta de imaginação com a repetição, várias vezes ao dia, sempre com determinação e entusiasmo, numa intimidade indiferente aos olhares alheios, como o meu, embora eu procure ser discreta…

Nesta observação não-participante, tenho aproveitado para aprofundar a reflexão sobre a comunicação e a resiliência na adversidade, nós em tempos de emergência sanitária à escala global, elas mantendo o foco prioritário: assegurar todas as condições para a perpetuação da espécie, família por família, na incansável construção recorrente de uma casa comum que coexiste com a restante biodiversidade do nosso singular planeta azul, numa aparente harmonia que só a nossa espécie, a mais predadora de todas, insiste em desrespeitar como se não houvesse amanhã – a História demonstra que, ao longo dos séculos desde que existe registo, a Natureza, saturada de tanta agressão por parte dos seres humanos, tem vindo a protestar, com crescente veemência, alertando-nos para a reparação urgente que se impõe, o que é também uma forma de resistência, através da produção de anti-corpos a nós, oferecendo-nos a tod@s a oportunidade de redefinir as nossas prioridades tão duvidosas e volúveis, recuperando também a nossa humanidade…

Desejo sinceramente que saibamos, exponencialmente, abraçar esse desafio aceitando a oportunidade de aprender melhor com mais este ‘aviso à navegação’, não por determinação transcendente, mas por imperativo de sobrevivência, sob a forma de um vírus agressivo que não distingue género, nem cor de pele nem conta bancária… As iniciativas solidárias entre humanos, sob a pressão inegável do perigo que não é apenas circunstancial, têm vindo a multiplicar-se, sempre em maior número que os estratagemas sem escrúpulos de alguns – juntos somos mais fortes, é uma evidência, mas vê-la em acção é sempre animador!

Virão, mais adiante, melhores dias, espero, e, com eles, o nascimento das crias deste casal de cegonhas que avisto diariamente, entre outras e várias alegrias mais tangíveis – como a de voltarmos a abraçar-nos com renovado gosto! – que deixarão de estar em suspenso… Mas, até lá, neste pousio inicialmente voluntário que agora se tornou forçado mas continua a ser proveitoso em mim, não desisto de reparar em tudo o que me rodeia, sobretudo fauna e flora, o que já é muito e nada tem de monótono, lembrando-me de continuar a dar valor, a cada manhã, ao privilégio que é estar viva com saúde suficiente e sem descurar o cultivo, temporariamente virtual, do afecto que tenho por cada um@ de vós.

Helena de Gubernatis
Março, 2020

Fotos de Manuel Rosário

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Escrito por

Poliglota de origem e por vocação, guardei no coração a História da Arte e dediquei-me à Comunicação: acredito no diálogo sem fronteiras, na criatividade humana e na partilha do conhecimento entre iguais, livres e fratern@s; sou uma observadora participante e tenho um sentido de humor inoxidável; gosto de morar perto da água, com cães & gatos, de viajar e de fazer jóias nas horas vagas.

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Últimos comentários
  • Parabéns pelo texto, Helena. Esta situação é propícia à reflexão e é bom passá-la a escrito. No fundo, tudo se resume à luta pela sobrevivência das espécies: a nossa, a das cegonhas e a do vírus (que também faz parte da Natureza).
    Boa sorte aí no teu refúgio. Bj

    • Grata, a ti Isabel, e ao DOMA, pela publicação do meu testemunho e pelo teu comentário auspicioso: ‘we shall overcome’ ! Abraço virtual

  • Grata Gubi❤️Senti o teu abraço nas asas desta cegonha! Até breve!