De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Ecos do meu pousio – Sortido Rico

Vagos, Domingo de Páscoa 2020 (e dias seguintes)

Tive a sorte de viver os meus primeiros oito anos de vida num apartamento com quintal, no centro de Lisboa. Era uma casa comprida, mais funda que larga, com três janelas para a rua, a do meio com uma pequena varanda. Sendo bastante sombria, com os quartos a darem para um saguão, pé direito alto e bandeiras de vidro nas portas, tinha, no entanto, um longo corredor que, como num túnel, a todos nos ia aproximando da luz exterior… Ao fundo, as divisões mais luminosas, a cozinha e a sala de jantar, deixavam adivinhar a surpresa que esperava por nós lá fora: uma ponte de ferro, que partia da varanda aberta, transpunha o vão do terraço do rés-do-chão onde morava a Porteira e desembocava no nosso recreio privativo!

Aquela engenhosa estrutura metálica assegurava o acesso a um manancial de brincadeiras e oportunidades de alegrias para a fratria de seis, mas também uma fonte de alguma apreensão por parte dos nossos pais, não sem razão… Tratava-se de um rectângulo largo, com uma área de relva e moldura calcetada, rematado no topo por um canteiro vedado com meia dúzia de estacas ligadas por arame simples que eram para nós, as mais novas e gémeas, baloiços informais onde ambas partimos a cabeça, mas que eram irresistíveis até chegarem as ‘Férias Grandes’ e disputarmos o baloiço-a-sério instalado no braço de uma nogueira robusta no belo casarão que a nossa avó paterna tinha na sua terra natal… em Vagos! À direita, uma sebe de altura média acompanhava quase todo o muro que separava o nosso lúdico território do quintal do 1º esquerdo, onde morava uma simpática família de judeus espanhóis com o seu Pastor Alemão, chamado Yatush (mosquito em hebraico), que nós, inexperientes em matéria de cães, desafiávamos subindo os dois ou três degraus que permitiam agilizar a interacção de vizinhança…

Graças a essa sebe, de aspecto denso e misterioso, durante alguns anos, as nossas manhãs de Domingo de Páscoa eram ocasião para madrugar: acordávamos bem mais cedo, na expectativa de irmos, a Clara e eu, à procura dos ovos com que o Coelho da Páscoa tinha prometido premiar o nosso ‘bom comportamento’… sabíamos lá, naquela época, que aquele bicho era um mamífero! O mais aliciante não era poder trincá-los, isso viria mais tarde com os de chocolate, mas encontrá-los, sem desconfiarmos que tinham sido cuidadosamente despojados do seu conteúdo, artisticamente pintados pelos nossos irmãos mais velhos, a pincel e aguarela colorida, e por eles habilidosamente escondidos de véspera naquela trama intrincada de ramos que era o ‘refeitório gourmet’ dos vagarosos caracóis em dias de chuva…

Nessa altura da minha infância, a chegada da Páscoa e o início da Primavera, com um aumento progressivo das horas de luz natural, confundiam-se ou, melhor, convergiam…hoje, cinquenta anos depois, são para mim indissociáveis, dado que em ambos os casos, mesmo sem fé na acepção convencional mas com a matriz judaico-cristã integrada, se trata de renovação, renascimento, regresso à origem – um fenómeno recorrente mas dinâmico, cujo potencial evolutivo é tão surpreendente…

A necessidade que fui sentindo de, no contexto urbano em que vivia, estar perto de zonas verdes e na proximidade da água, nasceu naquele quintal ímpar e cresceu no jardim ancestral dos nossos antepassados lusos, onde havia chorões, muitas flores, um lago com peixinhos, três poços, nozes, batatas e couves – assim, a decisão que tomei em Setembro de vir morar para Vagos foi uma escolha muito natural, embora condicionada pelas minhas circunstâncias pessoais…

Na casa onde actualmente moro tenho o privilégio de dispor de um jardim e, neste pousio agora confinado e cheio de incertezas, entre os afazeres domésticos e os mais curtos passeios com a minha cadela, entretenho-me a observar a vida que se reinventa à minha volta, o que é verdadeiramente terapêutico porque me sossega…

Continuo atenta, é claro, ao casal de cegonhas que avisto da janela da cozinha: o ‘condomínio’ subiu um patamar e é agora uma autêntica penthouse, em que só se vê o topo da cabeça daquela que estiver de serviço ao choco, em turnos cada vez mais longos, enquanto a sua ‘cara metade’ fica de atalaia, dia e noite, em ‘modo de poupança de energia’: numa só pata, como os flamingos! Etapa que ainda consente que amb@s se ausentem do ninho, embora brevemente… Esta inesperada oportunidade de birdwatching permitiu-me libertar a ‘veia’ e soltar a escrita, um desejo antigo, pelo que tenciono honrar essa dádiva e prosseguir neste fascínio, até que surjam novidades ‘pontiagudas’…

Outros pássaros, mais maneirinhos, vêm cá abastecer-se todos os dias: as rôlas, da côr do leite com pouco café, colarinho branco e fita preta, assustadiças, que esvoaçam aos pares e pousam nos fios eléctricos nesta época de enamoramento generalizado; os melros, pretos e com bico amarelo, cujo tamanho lhes permite serem mais afoitos, não só ignoram olimpicamente as bátegas de água que o vento forte se encarrega de espalhar, como aproveitam para explorar o seu habitat sem a ingerência da atenta quatro-patas residente e afirmar o seu território masculino, do qual são muito ciosos perante os pardais, e outros que tais, que se atrevem menos – mas todos eles, para minha alegria, não se cansam de cantar, chamar ou comunicar, como preferirem interpretar…

Optando por seguir o percurso menos tradicional, ou seja do céu para a terra, reparo, nestes dias de chuva, que os caracóis, de todos os tamanhos desde o mais ínfimo, proliferam por aqui e instalam-se, sem pedir licença, nas portas da cozinha e no tecto da despensa, provavelmente depois de se deliciarem com tanta variedade de folhagens…até surpreendi um, há dias, a fazer a sesta da tarde na portinhola de ferro da salamandra que há na saleta do anexo onde tenho o meu atelier criativo… Percurso idêntico fazem as lesmas, menos atraentes e sem capota, de várias gerações e igualmente gulosas mas mais elásticas …

O cenário ajuda, seja como for: logo à entrada, passado o portão, uma robusta roseira de Santa Teresinha que no Outono formava uma cortina retorcida e despojada, dá agora o mote, à laia de boas vindas, carregadinha de botões em miniatura que coexistem com as que já desabrocharam e as que foram murchando… No remate do primeiro canteiro curvo ao qual está encostada, apareceram há algumas semanas várias íris em dois tons de roxo, riscadas de branco e amarelo, em ameno convívio com outra variedade de rosas que eu desconhecia: brotam de umas bolinhas vermelhas que parecem bagas e abrem à luz as suas pétalas de veludo vermelho como um leque farfalhudo, lembrando as camélias… A alguns vasos dispersos no primeiro telheiro juntei, num meio-círculo que desejei que fosse convidativo, os vasos trazidos de Lisboa e acrescentei duas chaises longues de lona para momentos de pausa em que precise de me lembrar da visão de conjunto… No lado oposto à cozinha, junto ao anexo, coloquei o vaso alto da minha resiliente buganvília magenta e, para lhe fazer companhia, o vaso amistosamente oferecido de alecrim, agora viçoso e com as suas raras florinhas delicadas cor-de-malva…

Embora repartido por canteiros, este jardim foi plantado ao gosto eclético de quem o imaginou e quis promover a variedade num caos vegetal organizado, com muita alfazema, azedas quase fosforescentes que se fecham em tubinho ao anoitecer, mais rosas de Santa Teresinha, desta vez brancas, e muitas outras, mais individualistas e altivas: em lugar de destaque, no canteiro central, as amarelas, vermelhas, brancas, cor-de-salmão, cor-de-morango, e as minhas mais recentes favoritas, que são brancas com laivos cor-de-vinho, como pequenos guardanapos em que o tinto quis deixar rasto…

Só me falta partilhar a bonita surpresa que tive há uma semana: a gata vadia que venho protegendo há meses – por ser uma sedutora e a primeira criatura que se aproximou de mim logo após a mudança –, à qual chamei Bliss (sinónimo literário de felicidade plena em inglês), confortavelmente instalada na despensa onde a acolhi para poupá-la às chuvadas e já suspeitando que teria ‘brinde’, deu à luz três gatinh@s, todos diferentes – revelando assim o trio de pretendentes a cujo charme ela sucessivamente se rendeu!

Esta é, agora, a ‘minha’ biodiversidade feliz, que me faz lembrar o ‘Sortido Rico’ de bolachas variadas que o Sr. Moura, de bata cinzenta e olhos azuis emoldurados por óculos de tartaruga, vendia em cartuxos de papel pardo na sua mercearia, no bairro onde cresci…

Alguém me disse que a Natureza se está a “sacudir como um cão com pulgas” – assim sendo, saibamos ter a humildade de fazer o reset que há muito se impõe, retribuindo finalmente a generosidade com que o planeta nos brindou até agora!

Fico por aqui: a salamandra já só tem brasas, digeriu lentamente a lenha que cedeu às chamas para contrariar o ‘acentuado arrefecimento nocturno’ que por cá se instala sem cerimónia ao pôr-do-sol, neste porto de abrigo onde me encontro e também vou ao vosso encontro, virtual por enquanto…

Helena de Gubernatis
Maio, 2020

Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

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Escrito por

Poliglota de origem e por vocação, guardei no coração a História da Arte e dediquei-me à Comunicação: acredito no diálogo sem fronteiras, na criatividade humana e na partilha do conhecimento entre iguais, livres e fratern@s; sou uma observadora participante e tenho um sentido de humor inoxidável; gosto de morar perto da água, com cães & gatos, de viajar e de fazer jóias nas horas vagas.

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Últimos comentários
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    Que texto encantadoramente perfumado…….

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      Grata pelo seu generoso comentário!

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    Helena, leio e releio o teu texto e vou sempre descobrindo coisas novas na tua escrita envolvente que nos consegue realmente transportar para os ambientes que descreves. A casa da minha infância em Lisboa era muito parecida com a tua (não seriam todas?) e até me lembro que os vizinhos tinham uma corda com roldanas que atravessava o saguão, o que lhes permitia permutarem objectos variados dentro de um cestinho. Só espero que esse sortido rico do teu novo pousio te continue a inspirara escrita.

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    Merci, Isabel!! O que o engenho humano fazia, e continua a fazer, para aproveitar a luz e partilhar os recursos… Assim espero, também eu…Beijo grato!