De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...

Quinze meses sem entrar num avião!

Quinze meses sem levantar as rodas do chão!
Chama-me o desconhecido que está enraizado em mim.
Chamam-me as origens tão distantes de mim.
Vou à cidade lá tão longe para onde nunca parti
dar forma e lugar às histórias que tanto ouvi.
E onde a origem alemã em polaca se tornou,
vou desenrolar esse novelo, esta dúvida que se instalou.

Viajar em tempos de COVID

Estranho o aeroporto. Não o reconheço. Já não sei por onde entrar. Procuro os circuitos tão gravados na memória de tantas vezes que parti. Sou turista em aeroporto que é o meu.
Estranho o vôo. Não há pequeno almoço. Dão-nos uma barrita de qualquer coisa e tens direito a um sumo ou água. A entrada e a saída do avião são feitas fila a fila, zona a zona. Organizadas, calmas, tranquilas, faltam aqueles encontrões, aqueles empurrões, as pressas para sair, as malas que te batem nos pés. Reina o silêncio. Atrás das máscaras, calam-se envergonhadas as vozes de cada um.
Chegamos a Cracóvia, demorámos um bocadinho e de repente já estamos sozinhas. Descansam vazios os tapetes que estariam a rolar. Não há ninguém a quem perguntar.
Hoje não há histórias. Só cansaço.
Até amanhã.

Cracóvia

Fechar os sentimentos bem lá no fundo. Deixá-los percorrer os caminhos do cérebro, perderem-se nos labirintos dos pensamentos, mergulharem na desconhecida escuridão e fingir que nunca existiram. É assim que muitos somos. Eu também. Às vezes.
Hoje foi um dia assim. As emoções da visita ao bairro judeu e ao ghetto de Cracóvia ficaram bem escondidas. Exactamente como ficaram os nossos passos nos quilómetros de galerias da mina que percorremos. Bem lá no fundo.
Descemos até aos cento e trinta metros de profundidade. Caminhámos mais de duas horas por túneis, descemos inúmeras escadas. Tudo fechado. Sem espaço para sair. Sem luz ao fundo para onde correr. Imagem fiel dos meus pensamentos.
Da mina já saí. Dos pensamentos ainda não. Talvez amanhã os deixe transbordar.

Falta o Silêncio

Falta o silêncio na entrada do campo.
Conversam e riem descontraídamente os guardas e outros trabalhadores.
Falta o silêncio nas instalações que percorremos.
Ecoam os passos de todos no sistema de audição.
Falta o silêncio junto aos muros exteriores.
Ouvem-se os cliques das máquinas de fotografar.
Falta o silêncio nos dormitórios que nos deixam ver.
Ouvem-se os guias nas várias línguas dos que vêm visitar.
Só ver e ouvir nos dá muito que pensar. Mas faltou o sentir. Recuar mentalmente no tempo e deixar que o que aqui se passou entranhe, envolva e nos faça emocionar.
Há muita gente. E sim. O turismo é tranquilo, o barulho é contido, o ruído silencioso, mas não devia haver nenhum.

A Magda nasceu em Auschwitz. Mostra-nos as casas exteriores ao campo, de onde expulsaram os Polacos para que oficiais, guardas e outros trabalhadores alemães aí pudessem morar.
Devolveram as casas aos donos? Voltaram a morar nelas?
Claro. Isto foi muito mau sabes, mas a vida tem de continuar.

Guardiãs COVID-19

Aeroporto em Cracóvia caótico! Não está preparado para as normas de higiene agora em vigor. Não há espaço físico para tal.
Distanciamento zero! Em cada fila, separada pelas guias amovíveis, vão duas filas. Uma para lá, uma para cá.
Há filas para entrar no edifício (um termómetro para todos os passageiros)
Há filas para a segurança da bagagem (dois corredores só, sendo que há mais quatro fechados)
Mas o mais chocante são as pessoas com a máscara por baixo do nariz, por baixo da boca, encostadas ao queixo, numa atitude de total desprezo, de irreverência, distraídas, seja lá o que for.
Põe a máscara pedimos ao homem encostado a nós, a máscara inútil na forma de usar. E assim passámos a guardiãs do bem comum.
A nossa fúria virou um pedido/ordem aos infractores que passavam por nós. Um em cada cinco. Tive todo o tempo e paciência para contar. Dos alvos dos nossos ataques, recebemos as seguintes respostas:
Sorriso com um pedido de desculpas velado
Correcta colocação da máscara sem que nos olhassem sequer
Menosprezo total
Olhares fulminantes quase tão raivosos quanto a nossa expressão
Arrogância na postura, no gesto corporal
Houve um que até a tirou, mas perante o olhar aflito e envergonhado da filha, voltou a colocar.
E por fim, já no avião, calhou-nos um olhar penetrante que tivemos de devolver. Medimos forças, um combate a começar. Olhos nos olhos. Provocação mútua a crescer. Estava a ver a estalada a sair.
Valeu a hospedeira.
Boa viagem de regresso passageira da cadeira do lado. Vais torcida de cara e corpo a olhar a janela.
A máscara? Não a vejo. Aposto que está tão em baixo como o orgulho de um combatente que a batalha perdeu.

Já fomos e já estamos a voltar. Escapadela muito intensa, muito rápida, mas que muito nos trouxe. Desembrulhei o novelo? Certamente que sim. A minha ascendência é alemã.
A ver quando há mais.

Benedita Vasconcellos
Outubro, 2020

Fotos de Benedita Vasconcellos


Ver outros textos da Benedita Vasconcellos

Envolta. Embrulhada. Enrolada. Nos adjectivos dos que me rodeiam. Perigo! Maluca! Segurança! Bombas! Coragem! Nos preparativos que sempre antecedem uma saída. E, metaforicamente, no lenço que terei de usar à volta da cabeça. Vai esconder os meus cabelos e terá que o fazer também ao turbilhão que irei sentir assim que o tiver de pôr. Tudo o que me

Vamos então sair da zona de conforto. Fizemos o briefing e o maior desafio é: Comer carne todos os dias às três refeições. Perguntei se tinham arroz, parece que sim mas o guia não me pareceu convincente, nada cresce neste país. No Inverno as temperaturas andam abaixo de 40 graus negativos. Pelo

Partilhar
Escrito por

Nasci em Lisboa, estudei na Escola Alemã. Tenho três filhos espalhados pelo mundo que adoro visitar, para além dos outros lugares no mundo a que tento chegar. Dona e gerente de um Hostel em Lisboa.

COMENTAR

Sem comentários