Quando foi decidido construir um novo hospital na zona Oriental de Lisboa tornou-se claro que, mais cedo ou mais tarde, seriam desactivadas as instituições de saúde actualmente existentes na Colina de Santana. Vários grupos de cidadãos tomaram então a iniciativa de divulgar o valor cultural e histórico do local, alertando as autoridades e a opinião pública para a necessidade de dar prioridade à preservação de um património de valor incalculável que poderia vir a ser irremediavelmente destruído. A sua preocupação comum era fortemente justificada por um já longo passado em que a voracidade dos interesses imobiliários e financeiros, associados a um Estado fraco e a um novo-riquismo parolo, se tem encarregado de destruir largas zonas da cidade e, com elas, uma parte importante da nossa memória colectiva.
Porque é que a Colina de Santana merece uma atenção especial? Alguns templos religiosos e três núcleos excepcionais de azulejaria do século XVIII são materiais palpáveis e suficientemente antigos para manterem em respeito qualquer plano de investimento imobiliário. Mas a questão é, evidentemente, outra.
Desde que em 1775 o Hospital Real de São José se instalou no antigo Colégio de Santo Antão-o-Novo, a Colina de Santana passou a ser o local onde se concentraram as instituições médicas que, em Lisboa, iriam abrir caminho à medicina moderna. Foi ali que em 1825 surgiu a primeira escola de cirurgiões do país, a Escola Régia de Cirurgia, que mais tarde se transformaria em Escola Médico-Cirúrgica, embrião da futura Faculdade de Medicina. Ali nasceu o Internato Médico, as Carreiras Médicas, uma Escola de Enfermagem e várias especialidades médico-cirúrgicas. À sua volta foram-se agregando hospitais gerais, como São Lázaro, Desterro, Santa Marta, Santo António dos Capuchos, além do primeiro hospital destinado exclusivamente a crianças (Estefânia) e do primeiro hospital psiquiátrico (Miguel Bombarda).
A evolução técnica da medicina levou à fundação no século XIX de vários Institutos pioneiros (Oftalmológico, Bacteriológico, Médico-Legal), destinados à investigação e ao ensino, que passaram a funcionar na mesma zona. Entretanto, a Faculdade de Medicina, instalada no Hospital de Santa Marta, teve a sustentá-la um grupo excepcional de jovens professores que ficaria conhecido com o nome de “Geração de 1911”.
Pelas várias instituições médicas da Colina, passaram algumas das figuras mais notáveis da Medicina portuguesa como Sousa Martins, Câmara Pestana, Miguel Bombarda, Thomas de Mello Breyner, Reynaldo dos Santos, Francisco Gentil, Egas Moniz, Pulido Valente e Fernando Fonseca. Mas estes são apenas os nomes mais conhecidos para além de muitos outros que merecem ser estudados quando for feita a História da Medicina dos últimos cem anos.
Poderiam ser recordados muitos e variados aspectos que ligam a medicina portuguesa à Colina de Santana. Mas os que citámos são mais que suficientes para perceber que estamos perante um património histórico que merece o maior respeito e que deve ser tratado com grandes cautelas. Como?
Ninguém defende nem deseja que tudo fique na mesma. É claro que terá de haver demolições, novas construções e alterações urbanísticas. Mas o que é legítimo esperar é que o projecto para a zona se subordine a um programa prévio em que intervenham médicos e outros profissionais de saúde, historiadores e especialistas em diversas áreas da cultura e da ciência e não obedeça apenas a critérios técnico-empresariais.
O que se passou até agora, mais parece uma estratégia de facto consumado que não augura nada de bom: um projecto elaborado em segredo e um período de doze dias para discussão pública. O que se pretende esconder?
Face a esta situação impõe-se alertar a opinião pública para a situação. Será que se prepara mais um grave atentado contra a cultura, o património e a nossa memória colectiva?
Barros Veloso, ex-Director de Serviço do Hospital dos Capuchos
Isabel Almasqué, ex-Chefe de Serviço do do Hospital dos Capuchos
in Público, 18.07.2013
Foto de Isabel Almasqué