De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...

TIMOR ( 19 de Agosto)

Eu sei.

O Mundo está instável.

Não tenho a certeza porque lado do mundo regressarei. Se para a esquerda, se para a direita. Não penso nisso agora, os amigos sim. Temem, perguntam, preocupam-se. Não estamos em tempo de ir viajar para tão longe, dizem. Mas eu vou. Quero ir.

Já li a parte da biografia do Sérgio Vieira de Mello que diz respeito a Timor. Assisti a videos no Youtbe que descrevem com imagens muito do que queria saber. No avião vou ler contos e lendas dessa terra tão longínqua. E nestes quinze dias aprenderei muito mais. Como sempre, contarei um pouco do que vou sentindo.

BALI ( 23  de Agosto)

Aeroporto

Lembram-se de quando era preciso preencher um formulário cada vez que entrávamos em Portugal vindo de qualquer outro país? Estamos há quase uma hora na fila para preencher o dito papelinho. É suposto ser preenchido online, mas não funciona. Não há internet. Acabaram por deixar passar toda a gente sem papel.

Até aproveitámos bem a nossa espera. À nossa frente um israelita com quem conversámos todo o tempo num inglês bem arranhado. Trocámos palavras, where are you from etc.. e com um sorriso na cara mostra-nos o seu passaporte. Português! Judeu sefardita. E em tom de voz muito baixo: Sou de Israel mas chiu … estamos num país muçulmano e com esse passaporte não posso entrar. Disse-nos isto olhando para todo o lado com o ar de quem tem medo de ser descoberto.

Agora já prontas para apanhar o avião para Díli.

BAUCAU (25 de Agosto)

Mais desenvolvido que há dez anos atrás, certamente que mais do que há vinte aquando o saque e a devastação total.

Lentamente vão aparecendo os pequenos negócios com mão profissional. Um café à beira da estrada bem decorado, uma pousada que orgulhosamente assim se pode chamar. A par com as cabras e as galinhas que não nos deixam avançar.

O que me surpreendeu?

A simpatia desta gente simples. Os muitos, mas muitos carros topo de gama estacionados em frente das barracas com telhados de zinco. As crianças de telemóvel na mão. Muito limpas e sorridentes. Só os mais velhos ainda entendem português. Os novos só arranham o inglês.

Mas ainda não senti este povo. Amanhã

TÉTUM (26 de Agosto)

Entre 1975, após a ocupação indonésia e até à independência em 2002, o português perdeu-se. Não se ensinava às crianças, não era mais a língua oficial. E perdido ficou. Aparece agora nas escolas, mas esconde-se outra vez no esquecimento do resto dos dias. Tétum é a sua língua. A da Igreja, que se recusou falar indonésio, apesar de obrigatório por decreto.

Tétum é muito simples. Além de outras características, não há tempos de verbos, não se fala no passado, não se exprime o futuro. Para se referir a ele, a Maria usa esta expressão: Depois depois e até depois.

Isto é uma coisa muito maravilhosa não é?

DILI (27 de Agosto)

Orfanato de Santa Clara

Tomaram-nos a mão e levaram-na à testa. Todos. À chegada e à partida.

Pintámos, dançámos, distribuímos um tempo de alegria.

Eram vinte e sete as crianças do orfanato e para lá chegar atravessámos os bairros pobres de Dili. Uma realidade que não se vê. Com atenção de dia, com apreensão no regresso à noite.

DILI (27 de Agosto)

Cemitério de Santa Cruz 

Hoje fomos ao cemitério de Santa Cruz.

Correu correu rua abaixo. Apavorada com um homem atrás com um grande pau com muitos pregos. Correu correu e alguém a puxou para dentro de um microbus. Rasgou-me a saia diz. A Maria seguia na procissão que acabou em massacre no cemitério de Santa Cruz. 12 de novembro de 1991.

Escondemo-nos dentro da igreja, conta o Sandro. Mas vieram as milícias e desataram a disparar. Tinham armas, muitas armas, tinham catanas também. Tive muito medo. Deitei-me no chão, alguém me tapou com um lençol. Mas depois tive de sair com eles aos tiros. Pá pá pá. Muitos morreram. Setembro 1999.

A Maria é a empregada cá de casa, o Sandro foi quem nos levou. Perguntei tanto a um como a outro se sentiam raiva dos indonésios. Nada. O homem que perseguiu a Maria anda por aí. Tem filhos, diz ela. Já não há ressentimentos, responde o Sandro. Já vivemos todos em paz.

Pelo bem deste povo tão acolhedor, espero bem que sim.

TIMOR  (29 de Agosto)

A montanha

Hoje fomos à montanha. Muitas horas de carro subindo por estradas ora em bom estado, ora em muito mau.

Sair de Dili é uma outra realidade. Não é miséria. É pobreza. É a vida talvez acima do limite mínimo da sobrevivência. As casas são muito muito pobres, mas a comunidade vive na rua.

A família importa. As famílias não se separam. Os casais casam-se, muitas vezes já com quinze anos, e ficam a viver com a geração acima. Gerações. E mantêm os mortos juntos a si. Onde quer que achem que ficam melhor.

As casas sagradas guardam as memórias. Um velho sabre, uma catana, um chapéu, o que quer que represente o ente que morreu. E um fogo que nunca se deixa apagar. Em dias de festa, toda a família vem celebrar. Juntos.

ATAURO (31 de Agosto)

Nunca tinha feito mergulho. Sempre o encarei com alguma reserva. Desta vez não resisti. Aqui onde estou, Atauro de seu nome,  ilha do fim do mundo com laivos de modernismo, rendi-me e fui. Senti-me Nemo, senti-me Dori, peixe em reino de Ariel.

Balançando a rede sob o céu laranja, ouvindo a paz do fim do dia, lembro e relembro a explosão de cor que vivi.

BALEIAS (1 de Setembro)

Ontem falei na ilha do fim do mundo.

Atauro é mesmo muito muito pequena. 25 km de comprimento por 7 de largura. Faz parte de Timor Leste e os habitantes são muito muito pobres. Metade da Ilha não tem estrada, a outra metade tem uma. No único mercado de sábado vendem-se algas comestíveis, peixe seco, algumas hortaliças que vêm da Ilha de Timor, roupa e claro que também há Chinês. Mas quem quiser assistir a um dos espectáculos mais fantásticos a que se pode assistir, tem de ficar na lista de espera por mais de três anos. No pequeno canal com 25 km de largura que separa estas duas ilhas, passam baleias na sua migração para a Antártida. Hoje foram as cabeça de melão. Passámos por elas, nadaram à nossa volta.

Em Outubro e Novembro são as gigantes azuis. E quem tiver a sorte de conseguir uma vaga pode mergulhar com elas. Imaginem!!

Será que me vou inscrever?

UNTL (3 de Setembro)

Desafiaram-me para dar uma aula na universidade e eu aceitei. Qualquer tema, desde que seja em inglês, pediu-me o Tarcísio.

Fui professora que não sou, fui conselheira que não sou, fui actriz que também não sou.

Mas abri-me a estes jovens, ávidos por o que quer que eu lhes pudesse trazer. E foi maravilhoso.

OBRIGADA RITA  (4 de Setembro)

Maravilhosa anfitriã!

Abriu-nos a casa, abriu o frigorífico, abriu o tempo e o seu coração.

Com ela fomos à ilha, subimos a montanha e descemos ao mar. Motorista incansável, distribuidora de risos. Amante da vida que por uns tempos abraçou.

Pilares da ponte que nos permitiu transpor a distância entre nós e o povo de Timor.

Obrigada Rita. E mais não consigo dizer.

TIMOR (5 de Setembro)

FIM 

Já cheguei à minha rotina. De vida, de trabalho.

Muito ficou por contar. A língua, as tradições, as impressões. As conversas de manhã com a Maria que nos foi contando o que queria conforme lhe íamos perguntando e arrancando. Os casamentos, os enterros, as rotinas familiares.

Ricos nós? Talvez. Podemos ter mais dinheiro, sim, mas a forma como estes Timorenses vivem e cuidam da família é certamente muito mais valiosa que a nossa.

Até à próxima.

Bjs

Benedita Vasconcellos
Setembro, 2024

Fotos de Benedita Vasconcellos, Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

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Escrito por

Nasci em Lisboa, estudei na Escola Alemã. Tenho três filhos espalhados pelo mundo que adoro visitar, para além dos outros lugares no mundo a que tento chegar. Dona e gerente de um Hostel em Lisboa.

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