Terá sido um grito? Fiquei na dúvida. Estaria a sonhar? Ainda meia aturdida naquele torpor matinal do “meio a dormir, meio acordada”, fiquei à escuta. Outro grito surgiu, logo seguido de outro e de mais outro e de uma misturada de vozes estridentes e agudas. À medida que os meus sentidos se aguçaram, os sons tornaram-se mais distintos. Eram gritos de alegria, ruídos de brincadeiras, risadas de felicidade. De repente, percebi: os putos estavam de volta. Eram os primeiros a poder desconfinar.
Saltei da cama e levantei a persiana. Lá estavam eles no pátio da escola, todos de boné vermelho e bibe aos quadradinhos, os mais crescidos com máscara. Eram correrias desenfreadas, pulos de felicidade, “toca-e-foge” a enganar a memória dos abraços e uma vozearia semelhante ao chilrear de mil pardais, entrecortado pelas palmas e chamadas de atenção das educadoras que tentavam, em vão, pôr ordem na miudagem. Voltei para a cama e deixei-me estar ali, a apreciar o momento, até que as vozes se foram atenuando pouco a pouco e o silêncio voltou. Eram oito e meia da manhã. Sabia de antemão que aquele bruaá se iria repetir entre as dez e as onze e depois lá para as duas da tarde e finalmente às cinco.
Nesse dia fiquei à coca. À hora prevista, os putos não falharam.
Foi como se as horas dos dias se arrumassem de novo e o meu tempo voltasse a ter um significado que há muito tinha perdido. Foi como se as manhãs e as tardes deixassem finalmente de ser uma mera sequência de horas silenciosas e iguais. Foi como se de repente voltasse a poder distinguir a quietude dos sábados e domingos da agitação do resto da semana.
Aquela algaraviada que nessa manhã me entrou pela janela, interrompendo os meus sonhos, veio repor o compasso que há muito faltava aos meus dias confinados. Agora já não preciso de relógio de pulso, tenho todos os dias o relógio da vida.
Isabel Almasqué
Março, 2021
Fotos de Manuel Rosário
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Nestes últimos tempos tem-se aludido frequentemente ao factor cansaço como uma das principais causas da pouca adesão da generalidade dos cidadãos às medidas de confinamento decretadas pelo governo. As pessoas estão cansadas da pandemia, diz-se, muita vezes em tom de desculpabilização para tentar justificar aquilo que aparentemente parece injustificável:
Tò Zé Veloso | 2021-04-01
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Muito bom e com o tamanho exacto. Beijo