Nestes últimos tempos tem-se aludido frequentemente ao factor cansaço como uma das principais causas da pouca adesão da generalidade dos cidadãos às medidas de confinamento decretadas pelo governo. As pessoas estão cansadas da pandemia, diz-se, muita vezes em tom de desculpabilização, para tentar justificar aquilo que aparentemente parece injustificável: que as três regras básicas para evitar a contaminação – uso de máscara, distância de segurança e lavagem frequente das mãos – não estejam a ser cumpridas.
Assim sendo, quando se fala em “cansaço da pandemia” quer-se dizer exactamente o quê? Que as pessoas estão cansadas de usar máscara nos lugares públicos e sempre que estão com pessoas fora dos seus contactos habituais? O que dizer então dos profissionais de saúde que há 10 meses não tiram as máscaras senão no tempo exíguo de que dispõem para comer, tomar banho e dormir? Será que é a lavagem e desinfecção das mãos que cansa as pessoas e leva a um relaxamento progressivo das regras de higiene? Mas essas hábitos não deveriam já existir mesmo sem pandemia? Não seria bom aproveitar o momento para os integrar na nossa vida diária? Ou será que a chamada distância social é que está na origem deste tão apregoado cansaço? Já sabemos que os humanos são seres gregários por natureza e que a separação prolongada entre elementos da mesma família ou entre pessoas habitualmente próximas, pode levar a situações de grande perturbação psicológica, nomeadamente nos jovens e nos mais idosos. Mas coisa diferente é alegar que não se pode passar sem almoçar ou jantar com os amigos, que não se pode dispensar o café/convívio a meio da manhã ou da tarde, na pastelaria da esquina ou que não se pode manter a boa forma física sem ir caminhar ou correr à beira-rio, sem máscara.
Serão estes comportamentos realmente um sinal da fadiga pandémica ou haverá outros factores para os explicar? Porque nos confinámos todos, espontaneamente, no início da primeira onda, mesmo antes das indicações do governo e agora que a pandemia está no auge com mais de duzentos mortos diários, se assiste quase a um estado de indisciplina geral? Quais as razões para esta diferença de atitudes?
O primeiro factor poderá talvez estar relacionado com o medo. Na primeira fase, foi este o sentimento que dominou. Perante uma ameaça desconhecida de todos, potencialmente letal e que se transmitia rapidamente sem conhecer fronteiras, a reacção imediata foi o confinamento geral. Até porque o inimigo era invisível e os meios para o combater eram escassos. O cenário de ficção científica, que só se conhecia dos filmes, tornou-se de repente realidade e, tal como os animais que recolhem às tocas quando pressentem uma ameaça, assim fizemos nós.
A segunda razão deve-se, possivelmente, ao facto desta primeira reacção ter sido tomada individualmente. Cada um recolheu-se espontaneamente em casa, obedecendo ao seu instinto de sobrevivência, na esperança de se esconder o melhor possível dum predador perigoso e desconhecido. Não houve tempo para pensar, não foi uma decisão ponderada e racional nem decidida colectivamente. Teve a aparência duma reacção concertada porque resultou do somatório de muitas decisões individuais. Na verdade, só depois da generalidade das pessoas se terem confinado, é que as autoridades começaram a dar directivas gerais, baseadas nas recomendações das instituições europeias e internacionais, que navegavam elas próprias, às cegas. Por outro lado, o receio duma crise económica e social, sem precedentes, veio acrescentar-se ao medo de ser contaminado e do alastrar da pandemia.




Mas, como tudo aquilo que é novidade, este primeiro confinamento trouxe também, uma onda de solidariedade social e despoletou muita criatividade individual e colectiva. O ensino à distância, o teletrabalho, o take away, as compras on-line, passaram a ser a rotina. Apesar de isoladas em casa, as pessoas mostravam um certo optimismo em relação ao controle da pandemia e ao próximo retomar duma vida normal. Muitos viam até uma boa oportunidade de reinventarem a vida, estarem mais tempo com os filhos, fazerem um compasso de espera na habitual agitação diária, criar novos hábitos e até dar à natureza e ao planeta uma oportunidade de regeneração. E apesar da gravidade da crise instalada em muitos sectores económicos, a chegada do verão, a descida progressiva da curva pandémica e o anúncio de uma vacina próxima iam conseguindo manter o ânimo da população, baseado na doce ilusão de que íamos vencer o vírus, de que o fim da pandemia estava próximo e de que tudo não tinha, afinal, passado dum pesadelo. Foi este estado de espírito que levou ao relaxamento progressivo das medidas de segurança por parte da população, à crescente tolerância por parte das autoridades e ao consequente recrudescimento do número de infectados, alavancado pela chegada do tempo frio.
Depois, o disparar meteórico dos números, o arrastar da pandemia sem fim à vista, o isolamento prolongado, a irremediável monotonia dos recém-descobertos prazeres da vida caseira, a perda de noção progressiva das horas e dos dias da semana, as sucessivas declarações de Estado de Emergência, a pressão da situação económica e as várias hesitações dos decisores políticos, levaram a uma saturação crescente, a uma banalização dos perigos reais, a uma descrença na eficácia dos meios de combate propostos e a uma subestimação da catástrofe por parte dos cidadãos. A reacção de medo e de protecção individual, da primeira fase, foi substituída por uma atitude geral de negação da realidade. No meio médico, esta situação tem um paralelo e designa-se por “falta de compliance”. Significa a pouca adesão dos doentes a determinadas terapêuticas quando não observam melhorias rápidas da sua situação, quando não aceitam a doença, quando os tratamentos são muito prolongados, sem resultados aparentes e sobretudo quando a posologia ou as recomendações médicas são muito confusas.
Sabendo que os vírus não têm vida social nem cultural, não são afectados por crises económicas ou existenciais, não têm fins de semana nem feriados, nem fazem pausas à espera do resultado de reuniões e têm como único objectivo sobreviver e multiplicar-se, percebe-se porque é que qualquer pequeno deslize ou relaxamento das medidas de confinamento pode levar ao desastre. Foi o que aconteceu.
Aqui chegados, todos têm opinião sobre tudo e solução para o todos os problemas: se tivéssemos feito assim, se tivéssemos feito assado, se a decisões tivessem sido diferentes ou mais precoces, etc.. etc.. É claro que, à posteriori, tudo parece fácil e evidente. Já o poeta falava no “outrora agora”. Mas não vale a pena arranjar culpados e bodes expiatórios para nos apaziguar a consciência. O peso da nossa cultura judaico-cristã empurra-nos sempre e irremediavelmente para a resolução dos problemas através da culpa e do castigo. Detectados e punidos os culpados, ficamos de consciência tranquila, arrumamos o assunto e tudo fica na mesma.
Não culpa, mas responsabilidade pela situação em que nos encontramos, tivemos todos: os cientistas que não se entenderam nas recomendações que fizeram, os técnicos que não previram as mutações e as estratégias do vírus, os governantes que tomaram as decisões erradas no momento errado, por desconhecimento ou por medo de beliscar a democracia e muitos cidadãos que foram inconscientes e indisciplinados. Estamos agora a pagar a factura dos almoços e jantares de Natal, das festas de aniversário, das corridas à beira-rio, do menosprezo das máscaras e da distância social. Mas estamos também a sofrer as consequências da falta de previsão dos surtos nos lares, do desinvestimento no SNS, das hesitações sucessivas e da falta de ponderação e clareza por parte das autoridades.
Chegámos a uma situação praticamente insustentável, quer para as vítimas da pandemia, quer para os profissionais de saúde, quer para a economia, quer para o país em geral, que tem neste momento um número inimaginável de óbitos e o maior número de infectados por milhão de habitantes, no mundo.
O curso e o desfecho dos acontecimentos históricos não depende exclusivamente da vontade e das decisões duma só pessoa, é antes a resultante das acções dos numerosos protagonistas que somos todos nós. O Cabo das Tormentas não foi vencido apenas graças à experiência e à sabedoria de Bartolomeu Dias. A acção e a determinação de todos os que estavam a bordo foram essenciais para o sucesso da empresa. Neste momento todos temos um papel a desempenhar neste combate, mas temos que deixar de andar aos bordos, ao sabor dos ventos, das marés e dos estados de alma do vários intervenientes; temos que seguir directivas devidamente ponderadas, claras e concisas; temos que sentir que as decisões são justas e baseadas em critérios científicos. Só assim chegaremos a bom porto.
Após apregoar aos sete ventos o milagre português, não vale a pena agora chorar sobre leite derramado. Temos que saber aprender com os nossos erros para que eles não se repitam. Há decisões que podem ser muito impopulares mas podem salvar muitas vidas e têm que ser tomadas sob pena de transformarmos este inverno no inferno do nosso desconfinamento.
Isabel Almasqué
Janeiro 2021

Fotos de Manuel Rosário
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Ma. Isabel Rebelo Pinto | 2021-01-31
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Não posso estar mais de acordo !
E afinal tudo se resume simplesmente, tal como dizes ao cumprimento de 3 regras simples:
. Usar máscara na presença de qualquer pessoa, mesmo parente, que não faça parte do agregado familiar !
. Lavar as mãos frequentemente ( como não ?)
. Manter o distanciamento social
E, por uma vez, esqueçamos o velho habito, infelizmente bem português, de procurar fintar as regras, bem próprio do “chico esperto” !!!
Ma. Isabel Rebelo Pinto
Isabel Almasqué | 2021-02-01
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É com tu dizes, Isabel, tão simples. Só que no meio da confusão das excepções, também, há quem goste de ligar o complicómetro. Less is more continua a ser verdadeiro.
Bj