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Três casas em Moscovo

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Em Moscovo, pude conhecer a casa de Tchékhov. Uma casa não demasiado grande, como os seus textos. Uma casa na qual podemos andar no seu consultório, ver os seus armários, os utensílios com os quais tratava os doentes, por vezes sem cobrar nada para o fazer. A sua mala de médico – gasta nos cantos, castanha, igual a todas as malas de todos os médicos da minha infância –, a mala de alguém com pouco ou nenhum tempo a perder. O insignificante quarto, no andar de cima, onde passava as inevitáveis horas da noite. Vou explicar de outra forma: Tolstói, a minha paixão; Tchékhov, o meu amor inconfessado, aquele que não deixa de estar presente por muito que passemos o resto da vida a dizer a outra pessoa o quanto ela é importante para nós. Somos casas habitadas por fantasmas – esta frase pode já ter sido dita um milhão e meio de vezes, mas nem por isso perdeu boa parte da sua verdade. Tolstói é monumental, pertence ao Olimpo, é lá que o devemos procurar. Tchékhov, esse, é do tamanho de todos nós, um homem cuja testa ficaria à altura da nossa cabeça se fossemos ter com ele em busca de solução para um problema de ordem muito mais material do que a literatura. Um homem suficientemente pequeno. E isso é uma coisa boa, uma coisa que nos faz dormir melhor. E assim era a sua casa, uma casa na qual tudo era contenção, tudo era humano, tudo parecia utilizável pelas nossas próprias mãos.

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Mas também a casa de Gógol. No bengaleiro, o seu famoso capote. Pode um capote que pertence a uma história tornar-se real? Pode, por outro lado, um capote que somos capazes de lançar pelas costas fazer parte de uma história? Imagino aquele homem de nariz grande a deambular pelas divisões, que se seguem sem corredor, numa arquitectura de uma simplicidade difícil de supor em alguém como aquele de quem estamos a tratar. Um nariz triste. E aquele penteado que não ajudava nada. Há, felizmente, pessoas que nunca reparam no que se passa à sua volta – esta passagem parece menos problemática se pensarmos que estas podem ter, mais tarde, uma multidão de olhos com a totalidade da sua atenção focada naquilo que fizeram. O horrível nariz de Gógol a passar, intocado, por entre os apreciadores que frequentam, hoje, a sua casa. Uma certa forma de estar fora do mundo e, com isso, participar nele como poucos. Na casa de Gógol, gastei algum tempo a olhar para a lareira na qual o que não conhecemos de Almas Mortas terá sido destruído. Fiz isso: gastei algum do meu tempo a olhar para a lareira na qual o que não conhecemos do seu interminável poema foi queimado por um criado diligente, um criado com brio em cumprir à risca o que um moribundo lhe dizia para fazer. Um moribundo mergulhado nas últimas alucinações, as mais difíceis, as que terão levado os seus olhos a desligarem-se de uma vez por todas do mundo que se encontra ao alcance dos nossos dedos. Pode um capote que pertence a uma história tornar-se real? Pode, por outro lado, um capote que somos capazes de lançar pelas costas fazer parte de uma história?

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A casa de Tolstói, ainda em Moscovo. Todas estas casas ficam em Moscovo. Ao cimo das escadas, uma carpete excessiva – não uma carpete demasiado grande para o espaço, uma carpete com metros quadrados a mais, é tudo –, um piano de cauda a um canto. Uma divisão feita dos melhores materiais, as melhores cores, as mobílias mais difíceis de encontrar. Pedem-me para usar uns saquinhos de plástico nos sapatos, é preciso cuidado para não tocar em nada. Ao fundo, o divã no qual um dos maiores prosadores de todos os tempos dormiu na última noite que ali passou e, com o tecto muito baixo, o escritório no qual, entre as duas e as três da tarde, o conde Tolstói se dedicava à escrita. A secretária desproporcionalmente grande em que o fazia – uma secretária, digamos assim, maior do que a mínima divisão da qual faz parte. Rascunhos de Guerra e Paz em cima dessa mesa de trabalho preta com um rebordo para não deixar as folhas cair – e esse rebordo parece uma varanda a correr à volta de uma casa: uma casa dentro dessa outra casa maior, uma casa, essa, rodeada por um jardim com árvores por entre as quais aquele velho de barbas extensas gostava de procurar sentido para as melhores horas do seu dia. Isto, claro, antes de compreender que não havia um único sítio que pudesse considerar seu. Árvores, uma por uma, que ele próprio fez questão de plantar.

Hugo Mezena
Abril, 2021

Fotografias de Manuel Rosário
Pinturas de Jorge Adrados, Casa de Teatro, Santo Domingo

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Escrito por

Hugo Mezena nasceu em 1983. É autor de "Gente Séria" (romance) e "As Velhas" (narrativa breve). Escreveu libretos para ópera, assim como melodramas para narrador e piano. Alguns dos seus trabalhos deram origem a obras plásticas e peças musicais. Vive em Lisboa.

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Últimos Comentários
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    Interessante périplo. De todos eles, quem sabe o Techekov é o meu preferido, porque era uma homem de acção, uma pessoa que encontrava e procurava outras pessoas.