De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...

Como gosto desta actividade, a arrumação dos livros!
Escolher o espaço onde vão ficar estes amigos de longa data, pô-los e tirá-los dos sítios…

Primeiro separo a poesia da prosa.
Tento a melhor localização para o Rilke,  que não sei ainda. Mas o Césariny fica ao lado do O`Neill.
O Herberto Helder, oh! o Herberto é mais que poeta, é a essência da poesia, é a poesia no seu estado mais puro….Ficará bem só, como ele gostaria.

Junto o Kafka com Robert Walser, Sándor Márai e Robert Musil. São todos do mesmo lado da Europa. E claro, Stefan Zweig, cuja personagem sempre me impressionou muito.
A seguir, os russos, Tchekov, Tólstoi, Dostoiévski.

Maria Teresa Horta, no monumental livro As Luzes de Leonor, ficará bem acompanhada com a  Maria Velho da Costa, nas Casas Pardas. Vergílio Ferreira ficará por aí também.  E Aquilino. E Miguel Torga, afastado do Aquilino, claro. Tento ser uma boa anfitriã!

Ponho o Lobo Antunes ao lado do Saramago, e penso…”bolas, mas eles não se gramavam”! Ponho-o então bem encostadinho ao Cardoso Pires, e já agora, vou buscar o meu querido Dinis Machado, em O que diz Molero e fico a admirá-los assim juntinhos. Já que estão em minha casa, quero que se sintam bem!

Agora vamos aos de língua francesa, (eu agrupo-os por línguas).
O primeiro a arrumar,  Camus.  Meu ídolo. Meu herói.
Depois de sair do colégio interno, com dezasseis anos, um belo dia encontrei numa estante um livrinho muito pequenino, da colecção Miniatura, O Avesso e o Direito seguido de Discurso da Suécia. Pois esse livrinho teve mais influência sobre mim, do que tudo que eu li e aprendi até hoje. Esse livrinho lançou-me as bases do meu carácter. Esse livrinho mostrou-me a verdade que eu sabia que tinha que existir, mas não sabia aonde. E eis que ela ali estava essa verdade, naquelas páginas sublimes, no meio das gentes simples e pobres daquela Argélia colonial. Mais tarde, trinta e tal anos mais tarde, encontrei outra vez essa verdade no livro póstumo, O Primeiro Homem.
Arrumo-o com carinho, por romances, por ensaios, por teatro. Fica numa estante , com uma jarrinha de flores, tipo altar.

O Sartre, esse fica bem sempre ao lado da Simone de Beauvoir, (afastado do Camus, claro).
Mas anda por lá perto a Marguerite Duras. A Yourcenar é outra história….Pensarei mais tarde

No espaço dos brasileiros, juntei a Clarisse Lispector com o Nelson Rodrigues, cheira-me que não vai dar bom resultado! Mas por perto anda gente como o Machado de Assis e o Chico Buarque,  que de certeza desanuviarão qualquer mau ambiente.

Céline talvez se entendesse bem com o Nelson Rodrigues, mas eu não misturo nacionalidades e o Nelson cheira-me que não devia falar francês.
Oh, e o que gostaria Lobo Antunes de ficar ao lado do Céline, na Viagem ao Fim da Noite! Mas, pronto, nada a fazer, não misturo línguas.
O Philip Roth, esse então, ocupa-me uma prateleira bem comprida, tenho os romances todos e duas biografias, a última com duas mil e tal páginas. Tenho demasiada admiração e respeito por ele. Não o vou importunar com ninguém. Mas na prateleira abaixo está o Henry Miller… só por acaso!

Outro ídolo mais tardio, Roberto Bolaño.
Separo-o bem dos outros sul americanos. Muito longe de todos. E fico a admirar as lombadas dos livros dele, e a do monumento que é o 2666! E falo sozinha, não conheço ninguém que fale sobre o Bolaño! Sinto- me só nesta situação de adoração ao Bolaño. A vida é assim, há coisas em que estamos muito sós!

E o Camilo, para onde vai? Longe do Eça, claro. Encosto-lha a medo o Aquilino, em Um Escritor Confessa-se.
E vou arrumando os meus autores, por montinhos de amigos, montinhos de simpatizantes, montinhos de admiradores.
São a a alma da casa, os meus autores. Olho-os silenciosos nas estantes, e sinto-me tão rica, tão bem acompanhada !

Mas não quero parecer um político armado em intelectual, no Questionário Proust, no jornal Publico!

Na minha família, não davam grande importância à leitura. Mas lá ia recebendo uns livros da Condessa de Ségur no dia dos anos. E nessa colecção, havia um livro que era uma biografia romanceada da escritora, (não me lembro do nome).
Foi a primeira personagem literária que me impressionou. A sua vida revestia-se de aspectos tão românticos, tão nostálgicos! A fuga da Rússia com a família, o casamento em França com o conde de Ségur…

Das Meninas Exemplares, passei para o Camilo Castelo Branco, autor que ocupava  quase todo o armário de portas de vidro, e de quem o meu pai era grande admirador. Mas para isso, tinha que esperar que os meus pais saíssem por volta das dez da noite para jogar no Club. Então, levava a Brasileira de Prazins para debaixo dos lençóis, e ali ficava a ler até ouvir o carro a entrar no portão por volta da meia noite. Grandes noites de leitura!

Não entendi na altura a extensão desta procura, desta avidez de ler. Não tinha ainda consciência do que sofria, durante a minha infância. Não um sofrimento de perdas, mas um sentimento de faltas. Faltou-me o amor, e fui vitima de bulling. Desvalorizaram-me. Tentaram anular-me. Menti-me para poder viver com isso. Acreditei nas minhas próprias mentiras enquanto socorro contra as verdades que me queriam impor. Criei uma vida ao lado da vida que não me era permitido viver.
Entre os segredos que guardei comigo, ficou a certeza do que soube sem ninguém me ter dito. Trouxe no meu coração a dor de quem não se sentiu amada.
E com os livros, sentia-me acompanhada.

Depois aos nove anos,  fui interna para um colégio e foi como entrar no mundo das trevas.
Era proibido ler.
Só livros sobre a vida dos santos.
Senti-me muito só e desamparada.

Por vezes parece-me que a vida não é senão uma sucessão de perdas.
Mas os livros não me falham, não me atraiçoam.

Quando chorava sobre um texto aos dezasseis anos, isso significava que eu tinha dezasseis anos.
Agora quando choro sobre um texto, significa que verto sobre ele as lágrimas da minha vida.
Os livros consolam-me. Dão-me colo.

Escrevo-lhes por cima,
torno-os coisa física minha
Encontro-os de manhã por baixo dos lençóis.
De dia gosto de ler na praia. Encho-os de areia, água salgada, protector solar.
Leio-os à noite só com a imagem da televisão sem som.

Por vezes, enquanto leio, a infância vem pé ante pé, toca-me à porta.

Não fui o que os outros foram,
não vi o que os outros viram,
e por isso, o que amei,
amei sozinha.

Manuela Carona
Outubro, 2022

Foto de pormenor de La bibliothèque en feu de Vieira da Silva

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Escrito por

Actriz, nasceu em 1947, natural do Porto, vive em Alfama

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Últimos comentários
  • Manuela, é bom poder tratar os livros por tu e fazer deles os nossos amigos mais íntimos. Estão permanentemente disponíveis, sempre prontos a ajudar-nos e têm a vantagem de ser eternos. Belo texto, parabéns.

    • Obrigado. Mas às vezes era bom ter com quem falar sobre eles…abraço

  • Com a Manuela é assim. O que ela escreve é de tal maneira envolvente, que me deixo levar pela forma, esquecendo-me do conteúdo. Mas concordo com tudo acerca do Camus. Obrigado Manuela

    • Obrigado. Adorava saber se gosta de Roberto Bolano…

  • Excelente texto. De Camus gosto particularmente de mito de sisifo.
    A autobiografia da Ségur intitula-se Os Desastres de Sofia.
    Boas leituras!

    • Obrigado. Mas a biografia da Condessa de Segur era mesmo uma biografia dela, escrita não sei por quem. Os desastres decsfia é um romance dela, condessa de Segur

      • Os Desastres de Sofia são baseados na infância da autora. Talvez, a biografia seja «La Comtesse De Ségur»
        de Yves-Michel Ergal