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A bicicleta

Era uma bicicleta verde de rodas brancas oferecida pelo aniversário que  lhe dera pernas aos 6 anos. Um mesmo corpo e loucura no acelerar. A mesma procura de aventuras. Amigos inseparáveis.

Percorria nela a floresta mágica da sua infância onde descobria cheiros a fumo que as mulheres faziam no chão das suas cabanas. Um cheiro quente que sempre associou à liberdade que sentia quando a sua bicicleta o levava por entre vegetação e árvores centenárias e no fim cansada de tanto correr,  dado que era um bocadinho as suas pernas em modo de rodas, se decidia por fim a descansar, à porta da casa grande onde vivia.

Era um miúdo de olhar vivo que com a pressa da agitação das novidades se envolvia na descoberta da natureza num mundo todo novo para um menino da cidade até  reencontrar os pais desrazoavelmente preocupados pela sua ausência.

E as rodas da sua bicicleta verde deixada no jardim feitas LP  a moverem-se em círculos irregulares cada vez mais lentos ao mesmo tempo que da sala grande se ouvia o som do lago dos cisnes ou da fada do açúcar. O pai era amante de compositores russos e ele imaginava ser o protagonista de grandes aventuras na floresta da sua infância, ao som da música. Uma floresta verde rodeada de mar e uma vida ao ar livre com amiguinhos brancos.

A bicicleta de rodas brancas levava-o à escola da parte da tarde. De manhã a mesma sala recebia os meninos com a cor castanha onde a professora repetia as mesmas lições ditadas à tarde.

O menino apaixonou-se pela pele canela da professora, era uma alegria no peito que batia muito quando se aproximava da sala, e ouvia a sua voz doce e lenta na articulação das falas e da letras que juntava em palavras, do seu olhar escuro sem se reconhecer a pupila, do seu toque de pele de veludo e do seu sorriso.

Foi mesmo o sorriso que o fez desejar perder-se nele. O menino e a sua bicicleta de rodas brancas tinham esse segredo. E a vida de ambos durou quatro anos até voltarem para o mundo a que chamavam de Civilização.  Ele ficou com um olhar triste que diziam atraente, com umas sombras brilhantes às vezes, parecidas aos relâmpagos na ilha da sua infância.

Quando cresceu foi à procura do cheiro da terra que as mulheres produziam no coração da floresta. E encontrou uma bicicleta grande verde caqui, novinha em folha para as suas partidas e chegadas.

Também de rodas brancas como LPs gigantes onde podia ouvir música e partir ao som da mesma, uma e outra vez, à procurar do cheiro da liberdade. e a encontrá-lo quando o reconhecia em folhas e troncos queimados.

Um odor tão doce como o feito pelas mulheres no interior da terra da sua infância a prepararem as refeições, na sua simplicidade sobrevivente.

 

Leonor Duarte de Almeida
Novembro, 2022

Foto de Manuel Rosário

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Escrito por

Maria Leonor Duarte de Almeida é oftalmologista em Lisboa - cidade onde nasceu. Mestre e Doutorada em Bioética leccionou na Faculdade de Medicina de Lisboa como Professora Auxiliar em Oftalmologia. A escrita tem tido uma presença na sua vida, mas somente em 2002 se expôs como escritora. Publicou cinco livros de ficção, um livro de ensaio sobre Autonomia em Bioética, em 2008, e viu o seu trabalho reconhecido pela crítica, recebendo o Prémio Revelação da SOPEAM, sendo ainda distinguida como premiada em Novos Autores Portugueses, pelo do IPLB em 2002. É membro da Associação Portuguesa de Escritores.

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