Tenho uma amiga escritora e professora de literatura que partilha, generosamente com os amigos, interpretações e partes do seu trabalho literário.
É especialista entre muitos, de autores portugueses onde se inclui José Rodrigues Miguéis, sobre quem está a fazer uma biografia muito interessante.
O seu meritório trabalho de quase detective envolve uma investigação de pormenor, alargada com muitas horas de pesquisa exaustiva de documentos, de pequenos recibos, de apontamentos e de cartas do escritor, incluindo troca de correspondência com amigos e comentários sobre o escritor de Uma Aventura Inquietante.
Um desses amigos era Raul Brandão.
Num desses documentos, surge um comentário expresso por Raul Brandão relativamente ao amigo e escritor José Rodrigues Miguéis, que me proporcionou imediato interesse.
Miguéis, que viveu muitos anos nos Estados Unidos onde terminou os seus dias, teve algumas dificuldades económicas num momento mais complexo da sua vida. Em Portugal era assim para alguns mais criativos e que “saiam da caixa”.
Nas muitas visitas que fez a Brandão, na maior parte delas mal alimentado, dizia a brincar, escondendo a sua verdade, que estava esfomeado. E realmente demonstrava ser um bom garfo.
Então Raul Brandão em modo de brincadeira comentava:
– Este Miguéis esfomeado come-me tudo o que há cá em casa, de cada vez que o convido para jantar e ainda me vai levar à miséria.
O comentário originava o sorriso de ambos durante a refeição. O escritor sabia obviamente da situação económica precária do amigo. Havia no comentário uma espécie de cumplicidade no olhar de ambos.
– Bonito, pensei e para dizer a verdade até me comovi. Sou sensível a este tipo de situações. Intuir é apoiar discretamente.
Quando cheguei ao consultório situado numa bela ilha no meio Atlântico, onde vou regularmente desde há vários anos, lembrei-me desta história de Miguéis, por um evento que me “caiu de paraquedas” no quotidiano.
Uma espécie de premonição sobre o outro, talvez aquilo que se chama “saber ouvir com outros olhos”.
Vi um homem extraordinário. Era um homem de idade avançada, na minha imaginação uma figura quase mítica, uma súbita aparição de um lobo-do-mar, do velho marinheiro do livro do Hemingway, “à portuguesa”, de enorme barba colorida de cor azul e um cabelo branco esverdeado, pelos ombros.
Um Marx da cor do céu, pensei.
Disse-me que eu o observara dez anos antes, numa altura em que vivia com graves problemas pessoais, esfomeado e sem posses, o que era certamente evidente, para quem o olhasse.
Na altura, quando foi pagar a consulta, espantou-se quando a recepcionista lhe disse que não era nada.
O homem confiou-me esse episódio do qual não me lembrava. Disse-me que eu o tinha olhado como uma pessoa e que por isso ao sair do local, já na rua, se recorda de ter chorado.
Hoje, voltou com o dinheiro de uma pequena pensão. Fez questão de me dizer que já podia pagar uma consulta, que estava mais equilibrado nesse campo e eu no fim fiz-lhe “uma atenção”, em apreço a momentos de compreensão mútua.
Quando perguntou o porquê desse valor menor, disse-lhe apenas que a segunda consulta era mais barata. Ambos sabíamos que não havia dois preços.
É muito bom visitar locais distantes para trabalhar, locais mágicos que nos estimulam os sentidos.
Um espanto eterno, um aprender de coisas novas sobre a condição humana e sermos surpreendidos por anjos de barba azul para nos lembrarem aquilo de que somos feitos, sem programação, sem fins concretos, sem pensar, apenas olhar com outros olhos, os olhos dos outros.
Pode sempre acontecer. Inesperadamente.
Leonor Almeida
Junho, 2024
Fotos de Manuel Rosário
Manuela Carona | 2024-06-30
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Muito interessante e muito bonito