Às seis horas da tarde, tocava a sineta do corredor para irmos para a capela.
Era a hora do terço e benção, e no fim, confissão, para quem precisasse.
No Inverno, e àquela hora, era noite.
Ao entrar, sentia-se um odor noturno, frio, húmido, mas misturado com algo estranho…
Não, não era o cheiro dos caseiros da quinta, que ficavam nos bancos de trás.
Os camponeses, como eram muito devotos, suspiravam enquanto rezavam. E respiravam atrás de mim, para o meu pescoço!
Viviam em Oliveira do Douro, como se chamava aquele lugar no sopé do Monte da Virgem.
Viviam em casinhas muito precárias, onde nós, as meninas do Colégio do Sardão, íamos em «visita aos pobrezinhos», no Natal.
(A confusão que me fazia essa intrusão pela casa dentro das famílias, o não respeitarmos a sua privacidade, para nos ensinarem a caridade!)
E eu, no meio das rezas, sonhava como seria bom dormir numa dessas casinhas no meio campo, diante do fumegante lume de achas de lenha, na escuridão iluminada pelo fogo.
Longe daquela capela, daquele colégio sinistro, daquela vida severa, física e moralmente severa.
No escuro acolhedor, respirando o odor dos camponeses, o ar, a chuva, a madeira, a terra húmida! Mas a estrada para lá era por entre árvores, de uma enorme escuridão.
Tinha medo ao pensar nisso.
Depois voltava a ouvir a voz da madre a rezar a «salvé raínha», caía na realidade e rezava também, afastando-me da escuridão das árvores do caminho da aldeia.
Não, não era esse odor a ar do campo, a chuva, erva e a terra molhada.
O odor estranho que se sentia na capela, era um misto de suor, sujidade, de gordura, de cholé, que emanava da figura do padre, e que alastrava pela capela, quando ele descia do altar e vinha para o confessionário.
E ali, perto de nós, de porta aberta, à espera das meninas que “precisavam” de se confessar, era um verdadeiro enjoo!
Aquele cheiro, o som do tilintar dos terços enormes das madres, o eco dos «orai pro nobis», que pareciam infinitos, constituíam um filme que nunca esqueci.
Consigo reconstituir esse ambiente na minha cabeça, passados sessenta e seis anos!
E recordo muito especialmente uma ida ao confessionário, em que depois de confessar os meus pecados, (não estudar e ler livros às escondidas na sala de aula, não beijar a mão da madre Pacheco à saída do dormitório de manhã, ir com a Alzira de Chaves para a sala das malas, comer enchidos que ela lá tinha escondidos, falar e rir nas formas quando era silêncio obrigatório…), no fim o padre perguntou-me:
«e da cintura para baixo, pecaste?»
E eu sem perceber nada!
Com nove anos, sem perceber coisa nenhuma!
Mas ficou-me a pergunta, não a esqueci.
Hoje, quando ia na rua, um raio de sol atravessava o quiosque dos jornais.
Em todas as primeiras páginas, bem ensolaradas, estava escrito,
“Pedofilia na Igreja em Portugal”.
Lembrei-me daquele odor.
Aquele odor pio.
Manuela Carona
Junho, 2023
Fotos de Manuel Rosário – Museu Nacional de Arte Antiga
Isabel Almasqué | 2023-06-12
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Muito bem escrito, e descrito Manuela.. É impossível que a cabeça das crianças ficasse imune ao ambiente sinistro desses colégios e aos seus odores pios. Já para não falar no resto…
Manuela carona | 2023-06-15
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Obrigado Isabel Almasque. Ainda há quem os deculpabilize…