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Que país somos?
Mais uma corrida, mais uma viagem. Antónia deixa a roupa no contentor do serviço, toma um duche veste-se e sai para a rua.
Olhos esbugalhados depois de mais uma noite cansativa, entende que aquela cidade flutuante que é o hospital, é mesmo a sua segunda casa e que o seu corpo não é mais do que uma ponte intermédia entre duas realidades que se articulam.
De um lado a vida familiar, o trabalho, a vida social, de outro a nova pandemia que invade o mundo e assusta um país com portadores do outro passaporte. O passaporte para o país da doença que ninguém deseja possuir.
O modo como a pandemia se expressou no comportamento social dos portugueses parece-lhe um case study curioso. Interroga-se sobre o porquê de um eventual estigma no divulgar de um teste positivo. Lembra-se de Susana Sontag com a sua metáfora da doença. E Camus com a flutuação de sentires no romance “A peste”. De início nota uma onda de solidariedade colorida, acompanhada de palmas às janelas, de lagrimita ao canto do olho, de discussões acesas nas redes sociais onde todos são opinion makers. Talvez esse movimento online de opiniões por vezes toscas seja demonstrador da necessidade do envolvimento social, num problema de saúde pública, um desejo da participação popular. A solidariedade é chamada à colação e sente-se grata por ser médica e viver esse momento de cidadania transbordante….
Ninguém deseja possuir o passaporte para esse palco de ficção de aliens, acumulados em cuidados intensivos e romper com a sustentabilidade do sistema. Um teste positivo é uma empreinte que exprime o medo de ser considerado irresponsável e pouco atento à saúde dos demais, e poderá ser o motivo para a adesão às boas medidas de prevenção. Na verdade um povo habituado a obedecer durante anos tem tendência a recear represálias e por isso o uso de máscara, nem sempre será tout court uma expressão global de cidadania responsável, de cuidado ou respeito pelo outro, assim como o distanciamento social ou a lavagem de mãos.
O certo é que independentemente dos motivos surge um comportamento de obediência a medidas sanitárias, quase exemplar. Chamem-lhe solidariedade, cumplicidade, ouvir os outros com outros olhos, medo de ser contagiado, individual ou colectivo, de repressão, o que quiserem. E sendo médica tinha o privilegio de viver a pandemia no olho do furacão e sentir as gentes mais próximas, mais atentas, mais respeitadoras das distâncias, das lavagens de mãos, da face coberta. Resplandecia de curiosidade pelo comportamento humano neste contexto de respeito pela saúde do outro. Uma nova dimensão social emergia na prática . Descobriu que os olhos agora falavam, quando antes olhavam o chão para não cumprimentar o vizinho, por falta de tempo, de vontade ou até de curiosidade pelo ser humano em geral. Os olhos eram agora órgãos curiosos, vivos e de grande informação. Uma nova dimensão cultural. Era uma utilitarista no sentido lato, e aproveitava o que de melhor se poderia obter com as medidas utilizadas.
O confinamento criara nalguns um vazio motivado pelo afastamento da família, um desejo de ouvir palavras amigas e também a necessidade de uma festa. Psicologicamente havia depressão, tristeza, sentimento de isolamento em particular nos mais idosos. Mas com surpresa, jovens vizinhos que antes mal se cruzavam, ofereceram-se para fazer as compras aos mais idosos e vulneráveis, com uma palavra de simpatia, um sorriso no olhar. Ela acreditava que a pandemia havia destapado uma tampa escondida no cérebro do século, que antes impedia os homens e as mulheres de ver para além do bulício do trabalho- casa -trabalho, aquilo que os surrealistas tanto apreciam na sua arte, que é ir até ao inconsciente.
Depois, a economia a definhar o medo do desemprego, a evidência de que a filosofia de todos no mesmo barco variava de paquete luxuoso para bote frágil em mar alteroso e os negacionistas em ilhotas de descontentamento emergiam. Movimentos anti máscara gritam pela liberdade individual. O individual contra o colectivo, São pequenas ilhas que enchem de ódio o meio popular facebook, twiter, instragram. A liberdade sem responsabilidade, anárquica é outra dimensão da pandemia em ponto pequenino. O melhor e o pior podem surgir em situações limite.
Mas o que predominava era uma cumplicidade espontânea que se sentia no ar como um perfume contagiante à Partick Suskind.
Antónia estava disposta a lutar por um mundo que pelo menos não piorasse, não um mundo melhor, pela impossibilidade de o conseguir globalmente como dizia Pasolini, mas mais solidário e esclarecido. Defendia que o SARS-COV2 a tinha ajudado a compreender que o ser humano é uma unidade transcendente, que no limite pode fazer o melhor e o pior. Os movimentos violentos contra as medidas sanitárias e o ódio nas redes sociais eram expressão dessa constatação.
Sabe que a pandemia mudou o mundo para melhor, que se tornou mais aberto mais atento, mais esclarecido, mais global nos sentimentos de entreajuda, onde os problemas reais de cada um são também de todos, tanto sociais como económicos.
Lá fora as sirenes ouvem-se a assobiar e o sol insiste em nascer.
Leonor Duarte de Almeida
Novembro,2020
Foto de Manuel Rosário
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