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Tempo e Geografia no Ano da Praga

Tempo e Geografia no Ano da Praga

O Mundo de Donald Evans

Mais do que o isolamento ou a solidão, a pandemia realçou a qualidade elástica do tempo: as horas começaram a ser mais longas do que esperávamos. Ou talvez seja a idade que as torna tão lentas quanto elásticas. E claro que estar sujeitos a horas mais longas do que é natural torna-nos mais jovens, traz-nos de volta a uma era em que o tempo passava devagar, éramos jovens, e na nossa juventude o tempo tardava em entregar-nos o futuro.

Agora as horas são lentas porque demoram a passar, não porque o que façamos demore a concluir. Hoje em dia, uma mensagem demora fracções de segundo a chegar aos antípodas, e não os nove dias que as cartas que escrevia na minha juventude na Califórnia demoravam a chegar a Portugal. Em contraste com esta lentidão do passar do tempo, a nossa realidade é agora instantânea, imaterial e irreflectida.

Noto isto porque dei com um postal de há décadas escrito por um amigo para quem o tempo foi sempre rápido, e se esvaiu sem paciência nem razão. A escrita está legível, posta ao papel a tinta permanente com cuidado e mão certa, mas os selos estão gastos, continuam verde-escuro, mas não consigo perceber se representam uma harpa, se o mapa da Irlanda, alguns dizeres em Gaélico continuam a adornar a parte debaixo que ainda mantém alguma integridade. A mensagem era um breve ensaio em optimismo, como que a forçar um fado risonho que nunca o chegou a ser, mas que exibe uma evidente ponderação: quem a escreveu pensou no que estava a passar ao papel, ruminou o que queria dizer, imaginou-lhe um desfecho. A mensagem está agora para além de qualquer conceito de tempo: para mim, nestas horas que passam cada vez mais lentas, está a tornar-se eterna.

Não tanto o postal mas mais o selo traz também à mente que os nossos conceitos de geografia – o nosso conhecimento do espaço envolvente – mudou substancialmente nestas últimas décadas. O mundo em que os selos eram relevantes permitia uma certa dissociação entre o mapa e o território: na emissão de selos, cada país esforçava-se por criar uma imagem cuja distância da realidade variava numa escala mais ou menos lata. Havia selos com temas históricos, selos com artigos comestíveis, selos a comemorar avanços sociais ou tecnológicos que, por vezes, existiam só na superfície de cada selo. E tal como a nossa percepção de tempo se altera com a idade, a nossa noção de geografia tornou-se menos variável com o advento da internet. Se dantes a geografia real tinha nos selos uma analogia relativamente imaginária, correntemente compreendemos a geografia de uma forma tão errada que a despimos de realidade.

Mas mesmo assim, o isolamento a que a pandemia nos obriga também alimenta a ânsia de viajar pelas nossas noções de geografia: precisas ou imprecisas, queremos sair das quatro paredes que nos constringem há meses e ir ver um mundo cada vez menos real. Ver postais, ou selos torna-se uma sublimação conveniente dessa ânsia. E é assim que talvez com uma certa ironia, o postal que encontrei marcava uma página do livro de Willy Eisenhart sobre o mundo de Donald Evans.

Até à sua morte aos 31 anos de idade num incêndio na casa onde morava em Amsterdão, Donald Evans emitiu – se tal é o termo apropriado – e catalogou quatro mil selos postais de quarenta e dois países que teve o vagar de imaginar ao longo dos anos. Desde cedo um empenhado filatelista, Donald começou desde cedo a criar selos para países imaginários, e fê-lo até aos 15 anos de idade quando a puberdade se tornou mais mordente e a atracção para criar deixo de ter raízes filatélicas . Não contente em só criar selos, deu-se também ao trabalho de os catalogar meticulosamente. Treinou-se depois em Arquitectura que praticou durante algum tempo em Nova Iorque. Insatisfeito com a estrutura que os seus dias tomaram, demitiu-se aceitou o convite de alguns amigos, e mudou-se para Achterdijk nos Países Baixos. Foi então aí que retomou a sua prolífica criação filatélica.

Donald criou uma vasto Atlas de uma geografia tão íntima quão imaginária: começando com a sua estadia nos Países Baixos em que criou o Achterdijk apodado para onde se tinha mudado, passando a países que celebravam a importância que a amizade e o amor têm na delineação do nosso mundo. Eram países com uma história rica e relações complexas, que eram frequentemente gerados a partir de palavras que os amigos lhe propunham. Assim, por exemplo, criou Adjudani baseado na palavra Persa para “judeu” e localizou o País no Médio Oriente, com uma série de selos representando os seus habitantes com turbantes e fezes. Ou então criou Amis e Amants, duas ilhas-nação que eram colónias do Reino de Caluda e que lhe permitiram lançar séries de selos sobre amizade e amor, ou Gnostis cujos selos ilustravam aspectos místicos. Com a sua evolução artística, Donald Evans emitiu selos a comemorar a independência de Amis e Amants e de Katibo, afirmando assim também a sua independência como artista.

E tal como os seus contrapartes reais, os países criados por Donald, deslizavam no tempo, deixando um trilho de eventos que ele representou como a história de cada um, criando séries de selos que abarcavam décadas, e representavam o esforço que cada nação fazia para evoluir. E mesmo considerando toda a diligência que ele exibia em descrever países tão reais como os do nosso mundo, Donald sempre teve a disciplina e a contenção de não detalhar demais a história e a descrição de cada país, para que a audiência pudesse participar na experiência de imaginar os pormenores deliberadamente omitidos. Parece que desta forma tentou democratizar o acesso a países imaginários de forma parecida à que as linhas aéreas de desconto o fizeram com o mundo real nesta última década.

Mas mais do que a representação de uma geografia íntima, a produção de Donald tinha uma dimensão peculiarmente dinâmica; por exemplo, imaginou a sua amiga Yteke como princesa, deslocou-lhe a identidade para 1928, e pô-la a viajar pelas paisagens fantásticas que foi imaginando. E cada vez que Yteke “via” algo que a lembrasse do seu querido Lhasa Apso, lá enviava um postal ao caniche. Estes postais fizeram parte de uma colecção de pouca duração mas que exemplifica o pormenor da criação a que Donald se entregava.

E mais perto dos nossos interesses, de Dezembro de 1973 a Janeiro de 1974, Donald acompanhou os pais numa visita à Madeira e às Ilhas Canárias. Comprou um dicionário de Português, aprendeu algumas palavras, e criou um novo país que apodou de Jantar, cuja capital chamou Amesa. Os selos têm denominações de milhões de reis até um conto, e representam géneros cujos nomes aprendeu ao visitar os mercados da Ilha. A colecção, é simples, meticulosamente produzida e singela.

Numa entrevista ao Paris Review em 1975, Donald Evans disse sobre os seu selos: “são uma forma vicariante de viajar para um mundo de faz-de-conta de que gosto mais do que aquele em que habito. Um mundo em que não há catástrofes, em que não há generais ou batalhas ou aviões de guerra nos seus selos. Os países são inocentes, pacíficos e compostos.” Assim, não lamento a lentidão com que o tempo agora passa ou o cair das fronteiras, do que tenho pena é de suspeitar que a nossa imaginação se atrofiou e continuamos ainda tão longe do mundo de Donald Evans.

Adelino de Almeida
San Juan Mountains, Colorado
Dezembro, 2020

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Escrito por

Nasceu e cresceu em Lisboa, doutorou-se em Engenharia de Estruturas na University of Colorado at Boulder, e depois de décadas de uma carreira peripatética em consultoria de gestão, tenta agora reinventar-se como escritor e tem para publicação a sua primeira novela, The Sublime Eucharist of Alfred Packer.

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