A ilha apareceu subitamente na pequena janela suja do avião, enormes rochedos negros a erguerem-se abruptamente do mar, a vegetação luxuriante, os altíssimos picos apenas perceptíveis no meio das nuvens.
O pesado hidroavião Catalina da Indian Air Force descreveu um largo circulo e pousou no mar agitado e escuro face à ilha de Baratang. Da praia de areia negra partiam já múltiplas pequenas embarcações para transportar as mercadorias e passageiros. Escapar ao malcheiroso cargueiro que liga a longínqua ilha de Baratang ao resto do arquipélago Andaman uma vês por mês tinha sido um verdadeiro milagre, só possível devido à hábil intervenção do meu bom amigo e companheiro de Eton, o Comendador Basilio Fernandes. Basilio tinha-se instalado há muitos anos em Calcutá e a sua viva inteligência e subtil savoir-faire tinham-no tornado num homem imensamente rico, dono de um gigantesco empório comercial.
Desta vez a minha missão era gravar o canto dos pequenos Cuicui (Collocalia esculenta) um pássaro de pequeno porte, raro e muito tímido que apenas canta uma vez por ano na altura do acasalamento. O seu canto segundo as poucas descrições disponíveis é único por ser completamente destituído de frases musicais repetidas. O meu sucesso em conseguir gravar o canto do não menos raro Giant Pitta (Pitta cerulea) nos highlands do Borneo em pleno território dos caçadores de cabeças tinha convencido a Royal Ornithological Society em confiar-me a cobiçada missão.
A ilha de Baratang, vulcânica e esparsamente populada é a mais remota do arquipélago Andaman. Os habitantes vivem da pesca e do cultivo do txarro e brokhas (umas espécies de vagens) que fazem crescer em pequenos terraços junto à costa.
Na praia abrupta esperava-me o meu guia, Trilok Mahanpatta.
Um homem seco e enérgico, os seus movimentos eram rápidos e precisos. Nas orelhas pesados brincos de cobre. No olhar brilhavam-lhe a inteligência e a franqueza com um toque de ironia. As tatuagens rituais nos ombros e braços traíam a sua importância na mais alta hierarquia religiosa da ilha. Após alguns dias de preparativos embrenhámo-nos na densa floresta que recobre toda a ilha acima dos terraços de cultivo do txarro.
A ilha Baratang é do ponto de vista zoológico muito interessante com algumas espécies únicas entre as quais o tímido Cuicui a a temida naja Phiragarabara cuja picada é invariavelmente mortal no espaço de uma hora. Não há até hoje explicação plausível para o facto de ser esta a única ilha do arquipélago Andaman a ter cobras.
Do ponto de vista antropológico a ilha de Baratang é ainda mais curiosa. A sociedade organiza-se em linhas matrilineares fortíssimas e praticam aquilo que o professor George O. Stuffy na sua célebre monografia “A comparative study of family structure in the South Andaman Islands” Chicago University Press definiu como “exogamia oportunística não selectiva intempestiva”.
As aldeias são constituídas por dois grupos de long houses parecidas com as de Borneo. A diferença aqui é que os homens vivem completamente separados das mulheres. As crianças são cuidadas pelas mães e os rapazes vão viver com os homens no despontar da puberdade. Todas as relações são homossexuais excepto durante curtos períodos bem definidos em que é utilizado um long house isolado para relações heterossexuais com vista à reprodução.
Os homens que aportam à ilha são disputadíssimos por todas as mulheres, certamente numa pulsão atávica de renovação do pool genético. Os habitantes de Baratang são surpreendentes pela variabilidade da cor dos olhos e tons de pele. Através dos séculos resistiram a todas as tentativas de catequização e permanecem até hoje irredutivelmente animistas.
Havia já alguns dias que progredíamos penosamente pela densa floresta, Trilok revelava-se ser um bom guia sempre pronto a explicar o que íamos vendo, mas dos Cuicui nem sinal. O meu pesado saco com o fiel Nagra e os microfones especiais construídos pela equipa do Professor Hass Öhle de Gotemburgo dificultavam o progresso. Começava já a desanimar, quando durante uma paragem em que Trilok me mostrava uma borboleta rara no alto de um tronco vi pelo canto do olho algo a mexer no chão – Cuidado!!! gritei, Trilok empalideceu. Deu um pulo prodigioso para trás e a perigosa Phiragarabara deslizou, atravessando o trilho desaparecendo na floresta.
Levou algum tempo para Trilok se recompor. Durante o resto do dia nāo proferiu palavra. Caiu a noite e à fogueira explicou-me que por lhe ter salvo a vida éramos agora irmãos. Havia que fazer sem delongas o ritual confirmativo. Acedi sem grande entusiasmo, na realidade o meu interesse é a zoologia e não tenho muita paciência para rituais primitivos.
Com uma tocha na mão Trilok embrenhou-se na floresta e muito tempo depois voltou com umas pequenas plantas na mão. Explicou-me que tínhamos que beber uma infusão e depois fazer as incisões rituais nos membros e tórax e permanecer juntos para que os sangues se misturassem.
Bebi a infusão, tinha um sabor acre que lembrava um pouco o Zhuangyhuanfent Zhuke tea que se vende em Hong Kong. Inicialmente não senti nada mas quando Trilok começou com a sua faca a fazer múltiplas incisões nos meus braços e tronco curiosamente não senti dor nenhuma. Quando finalmente chegou a hora de trocar os sangues a minha cabeça andava à roda e a noite escura à minha volta brilhava com mil cores fosforescentes pulsando com o ritmo das batidas do meu coração, de repente perdi a memória do que aconteceu.
Na manhã seguinte a floresta tinha retomado o seu aspecto habitual. Sentia-me ligeiro enquanto consumia o meu txarro matinal e trauteava o “YMCA” dos Village People. Sorvendo o seu chá Trilok disse-me abruptamente: -Agora, que és mesmo meu irmão, queres ver o templo de Sesa Naga?
Fiquei surpreendido…
Havia vagas histórias sobre o templo e rumores de sacrifícios humanos narradas pelo navegador holandês Van Der Meerde no século XVIII mas pensava-se que se tratavam de pura confabulação. Ao longo dos anos repetidas tentativas de encontrar o templo tinham sido infrutíferas.
Movido pela curiosidade e também porque a nossa busca dos Cuicui se estava a revelar infrutífera, aquiesci. Trilok explicou-me que o pequeno templo se encontrava no topo da montanha, permanentemente envolto em nevoeiros e que seriam precisos dois dias de escalada para lá chegar. De facto não tinha minimizado as dificuldades o caminho era um trilho irregular quase imperceptível por entre rochedos imensos com longos percursos estreitíssimos escavados em falésias abruptas. Progredíamos lentamente quando ao fim da tarde do segundo dia e depois de um percurso particularmente assustador escavado na rocha à beira de um precipício sem fundo Trilok disse: – Chegámos!
à suivre