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Quero escrever sobre tempo, e escrevo também sobre memória

Hoje de manhã despedimo-nos dos nossos vizinhos que passam o Verão aqui nas montanhas e o Inverno no calor do Texas. O Bill tem uns 85 anos e a Pat já vai nos 82, ambos estão muito debilitados, com uma mobilidade bastante comprometida, e ele com evidentes sinais de demência.

“Ve-mo-nos na Primavera?” perguntámos-lhes. Fez-se um silêncio desconfortável, olharam um para o outro, a Pat encolheu os ombros e respondeu-nos com um “talvez” sorridente. A pergunta não enunciada cada Primavera na nossa vizinhança é se o Bill e a Pat sobreviveram ao Inverno. Para o Bill e a Pat a natureza do tempo e a sua eternidade são irrelevantes. Para eles o tempo é irremediavelmente finito, e até o presente é curto.

Ao atingirmos o cume da montanha que temos estado a trepar há cerca de uma hora, pergunto à Y se se lembra de aqui termos chegado há uns 30 anos. Diz-me que não. Tal como uma miríade de outras ocasiões, a Y não tem memória de muito. Nunca teve. Não é que não preste atenção ao que lhe vai acontecendo, ou ao que se lhe passa em redor, ou até que sofra de uma forma de demência selectiva, mas apenas que nunca teve grande inclinação para acumular memórias.

Y navega ligeiramente pela vida, deslastrada de memórias, ao ponto de termos entre nós a piada de que ela vive num presente eterno. Vive uma vida com um passado impreciso, e, um pouco como consequência, um futuro plástico que se vai moldando à medida que cada presente se extingue.

Não há memórias mais verdadeiras do que as do que nunca foi, é uma das minhas citações favoritas de Fernando Pessoa. É uma citação que aponta para uma descrição tão poética como assustadora do passado: que está dissociado de qualquer verdade absoluta, que cada um tem a liberdade de articular as memórias que quiser, ou que se pode abandonar as memórias que com o passar do tempo entram à deriva e se afastam cada vez mais dos eventos que as geraram, que se emaranham umas nas outras e adquiriram novos apêndices e ligações. São memórias que têm mais a ver com o que imaginamos ser, do que com um passado real.

E claro que se cada um se pode entregar ao capricho de burilar os detalhes do passado que lhe servir, então estamos perante um passado e que é plural, um passado que pode tomar infinitas possibilidades, cada possibilidade a habitar a mente e memória não só dos que participaram num evento passado, mas também dos que tomaram conhecimento dele, sem nele nunca nele terem participado. Não há assim um passado verdadeiro, apenas visões diferentes do mesmo evento, cada uma colorida pelos desejos e caprichos de quem as mantém.

Na ausência de um passado verdadeiro, não há uma bitola acerca da qual possamos medir a distância a que situamos a nossa memória em relação a um passado verdadeiro. O que podemos, isso sim, é avaliar a distância entre a nossa memória de um evento, e a memória que têm os outros intervenientes nesse mesmo evento. Neste paradigma, o passado verdadeiro resume-se a uma média aritmética dos passados de todos os seus participantes. É uma regressão à média que produz um passado bem mais medíocre  do que o que recordamos, e daí a tentação de alimentar um passado que nunca foi, em vez de nos rendermos a um passado banal de consenso.

Não há assim absolutos nem consensos para a realidade da nossa memória, apenas um impassável abismo de incerteza e relativismo.

“Então e depois? O que aconteceu depois?” Ao chegarmos ao fim de cada história, as minhas folhas perguntavam-me sempre o mesmo, “então e depois?” O que acontece aos personagens, como serão os príncipes e princesas anos depois do fim que se dá convencionalmente a cada história? E o que determina o fim de cada história? Parece haver uma convenção lógica para o fim de cada narrativa: cada história pára quando lhe falta continuidade. Gostamos de histórias com “princípio, meio e fim,” e abominamos infinitas continuidades de eventos. Cada história decorre num segmento finito de tempo. Só estes segmentos parecem naturais ainda que, paradoxalmente, tenhamos a noção que o tempo é infinito. E, contra natura, as nossas memórias e a nossa percepção do mundo são fragmentárias, não temos memórias do tempo contínuo que decorreu desde que tivémos consciência, mas sim fragmentos que são logicamente coerentes, que têm princípio, meio e fim, ainda que, ao mesmo tempo, saibamos que não é assim que a realidade se desdobra no tempo.

Na ânsia de nos sentirmos vivos e de recordarmos todos os momentos, acabamos por nos imergir no absurdo de descurar talvez a maior parte da nossa vida, recordando apenas os fragmentos que são logicamente consistentes, ou os que estão mais fortemente ancorados nos nossos sentimentos. Não vivemos num tempo contínuo, mas sim aos solavancos de evento memorável para evento memorável, inferindo apenas o que se passa pelo meio deles.

As minhas filhas renderam-se bastante cedo à realidade de que a vida que importa seja vivida aos soluços, e a que menos importa seja uma espécie de interlúdio sonâmbulo a que não vale a pena dedicar muitos neurónios.

Para os que teimam em viver longas vidas, a persistência da memória requer que o passado seja podado de gavinhas, todos esses filamentos que o possam amarrar à constância de uma verdade. O que nos resta é a nossa versão dos eventos sempre solarenga e morna como um fim de tarde no Verão da nossa alma, e a versão mais verdadeira do passado é a que nos traz poesia e conforto, é aquela em que somos heróis de uma mitologia íntima em que liquidamos os dragões da nossa banalidade.

A estratégia a seguir para uma longa vida de contentamento é abandonarmos noções de que o tempo seja infinito, mas sim estendermos o nosso presente até ele formar uma eternidade. O facto de minutos se estenderem até horas, e horas até dias, os dias a semanas, as semanas a meses, e por aí fora até um infinito de milénio após milénio, é-nos irrelevante, o que é deveras importante é criar um presente eterno, um presente em que minutos se dividem em segundos, e estes em fracções cada vez menores, ad infinitum, até que e momento contenha em si uma infinidade de outros momentos, e que todos sejam infinitos.

Assim, agrilhoados a um eterno presente, fico por uma eternidade de mão dada com a Y, no topo da montanha a ver o sol a desaparecer lá para a beira do mundo, certo de que, regressem ou não na Primavera, o Bill e a Pat vivem para sempre.

Adelino de Almeida
Outubro, 2023

Fotos de Manuel Rosário e Minnie Freudenthal

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Escrito por

Nasceu e cresceu em Lisboa, doutorou-se em Engenharia de Estruturas na University of Colorado at Boulder, e depois de décadas de uma carreira peripatética em consultoria de gestão, tenta agora reinventar-se como escritor e tem para publicação a sua primeira novela, The Sublime Eucharist of Alfred Packer.

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Últimos comentários
  • desafiei-te a escrever sobre o Tempo e recebemos muito mais do que isso! obrigada Adelino.

    • De nada, Minnie. Vou tentar por ao papel mais uns textos como este.

  • Agrilhoados a um eterno presente…gostei muito. Gostaria de o ler mais vezes

    • Muito obrigado.

      • Excepcional!

  • O Passado é uma história que contamos a nós próprios (Murakami)
    O Passado nunca morre. Nem sequer chega a ser passado (William Faulkner)