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Os Kakure Kirishitan

Os Kakure Kirishitan

(Cristãos Escondidos em japonês)

A beleza está nos olhos de quem a contempla. A fealdade também.

Nunca os japoneses tinham visto gente mais feia, quando os portugueses desembarcaram pela primeira vez em Tanegashima. Foi a debandada geral com a criançada a fujir e as mulheres a esconderem-se em casa. Dirão mais tarde dos portugas, “que têm os olhos redondos como os das vacas, pêlo no corpo como os macacos, e tal como os cães, não assentam o calcanhar no chão quando caminham. Além disso cheiram a morto”.

Pouco auspicioso começo de uma das histórias mais bizarras das aventuras marítimas portuguesas. Após os períodos áureos de Nara e Heian (Sec VIII ao Sec XII) em que o Japão, com um governo central eficiente, viu eclodir uma cultura e sociedade florescentes e pujantes, entrou o país num período confuso (sobretudo para mim que não sou historiador). Quando os portugueses chegaram em 1543, o Japão desmembrado sob o domínio dos Daimyos, foi terreno fértil para o que aconteceu nas cinco décadas que se seguiram. E o que aconteceu foi uma campanha de catequização e uma revolução cultural de proporções épicas, ameaçando destruir as bases da cultura e visão do mundo dos japoneses. Mas, tal como se verá, os japoneses não eram nem Incas, nem Aztecas.

A História

Com as trocas comerciais como pano de fundo, missionários jesuitas (a maioria portugueses) iniciaram a catequização das populações locais. Mais tarde Franciscanos e Dominicanos de Castela, Navarra (Francisco Xavier), e do que virá a ser Itália (Valignano) chegaram também, mas a maioria foi sempre portuguesa. Ao longo de mais de cinquenta anos de peripécias complicadas, milhares de pessoas (cerca de 300.000) e vários daimyos (86) converteram-se ao catolicismo. Um deles, Hasekura Tsunenaga viaja até Roma, via México e Espanha onde é baptizado. Há seminários por todo o lado, igrejas e a sagração de padres (bateren ou iruman como irmão, em japonês) conta-se às centenas. Com a unificação do Japão sob a tutela de Toyotomi Hideyoshi e o começo do período Edo, as coisas começaram a azedar piorando progressivamente sob o sucessor de Hideyoshi, o shogun Tokugawa Ieyasu (tenho um fraco por estes nomes japoneses!). A 5 de Fevereiro de 1597 seis franciscanos, dezassete noviços japoneses e três irmãos leigos jesuitas japoneses foram crucificados em Nagasaki. Perseguições, crentes torturados e executados por se recusarem a abjurar, e a expulsão de todos os estrangeiros, assim como um número significativo de convertidos japoneses, foi o desenlace final, e em meados do seculo XVII o Japão fecha-se completamente a qualquer influência exterior, livros estranjeiros proibidos, qualquer contacto com pessoas de fora punido com a morte (o Sakoku de 1636). Só um pequeno posto é deixado aberto para ocasional comércio com holandeses.

E passaram duzentos e tal anos.

Em meados do século XIX o americano Perry força a abertura do país ao exterior. Segue-se a revolução Meiji e um contingente de padres franceses abre uma pequena igreja. Um dia, um padre de nome Petitjean recebeu um grupo de campesinos que lhe bateram à porta. Insólito facto dada a proibição de contacto vigente. Uma mulher confessou que numerosas famílias tinham mantido a fé cristã na clandestinidade, por várias gerações. Tinham vindo para se certificarem de que o padre era celibatário, enviado por Roma, e quiseram ver a imagem da Virgem com os seus próprios olhos. Subsequentemente, o padre Petitjean investigou e descobriu assombrado que os clandestinos tinham mantido rituais litúrgicos como o baptismo, sem qualquer contacto com o mundo católico, durante duzentos e cinquenta anos (nove ou dez gerações). O Papa Pio IX clamou milagre.

Estando a proibição de contacto ainda em vigor, deste grupo inaugural de Kirishitan, 36 foram subsequentemente executados. Só em 1873 foi a lei anti-cristã abolida.

A Doutrina

A japonificação da doutrina católica através de gerações, em que não há qualquer documento escrito por medo das perseguições, e em que toda a transmissão é oral, ritual, sem que o congregante faça a mínima ideia do significado das palavras que pronuncia, levou a que por exemplo a Ave Maria, originalmente Ave Maria Gratia Plena Dominus Tecum Benedicta, se transformasse em Ame Maria karassa binno domisu terikobintsu. E o mesmo se passou com o Padre Nosso, o Credo e outras orações (Orasho), em que é possível depois de tanto tempo discernir o sentido original subjacente à recitação Kirishitan. Em algumas comunidades, Poncio Pilatus desdobra-se em dois, o Ponsha e o Piroto, sendo a matança das criancinhas atribuida a eles. Ignoro o que fizeram do Herodes. A Virgem dá à luz num estábulo, mas num toque japonês, o dono do mesmo oferece-lhe um banho quente. A vida eterna é secundária, a maioria das preces são dirigidas à vida presente, por boas colheitas, pescarias, harmonia social. O culto dos antepassados é proeminente, sob a forma de devoção aos mártires de Nagasaki. As imagens da Virgem, sob a forma de Fumie ou estatuetas, adquirem um carácter de deusa shintoista. A ritualização dos actos litúrgicos assume um aspecto mântrico, com extremo cuidado na repetição fidedigna dos mesmos, tal como foram transmitidos pelas gerações pregressas.

Depois da abertura a maioria dos Kakure aderiu à Igreja Católica, mas alguns optaram por continuar os ritos dos antepassados. Este grupo, os Hanare Kirishistan estão em vias de extinção. Os oficiantes são todos octogenários e a gente nova ignora-os.

Nas brumosas ilhas de Goto e Sotome desaparecem as preces kirishitan.

Silêncio……..

Glossário

Fumie – Imagens da Virgem Maria e de Cristo

Daimyo – Senhor feudal e da guerra, apenas subordinado ao Shogun

Shogun – Governante militar de facto, nomeado pelo Imperador que é apenas uma figura simbólica

Silêncio – Romance de Shusako Endo, baseado nos acontecimentos da época

José Luís Vaz Carneiro
Solipso52@aol.com

Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

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Escrito por

Curso em Medicina FML 1975.  Clínica Geral em África, 3 anos. Residência em Medicina EUA, Mount Sinai School of Medicine, Board certified. Hospitalista por 20 anos em hospitais dos EUA, reformado. Professor Agregado de Medicina, ano lectivo 1998 Yale University. Curso de Finanças e Banca Prof Perry Mehrling. Hobbies~Guitarra Clássica, Economia, História, Arte, etc

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