Esses homens e os seus galos têm presença, afirmam-se, ficam em pé à nossa frente. Não há aqui dúvidas sobre que são (existem), mesmo quando há dúvidas sobre quem são (qual a sua essência). Na verdade, em muitos sentidos (e, no fim de contas, todos os sentidos são simbólicos), eles não são grande coisa: nem os galos, nem os homens. São bichos pequenos e de pouca monta e os seus donos são homens vulgares sem carreira, sem poder, sem dinheiro no bolso e, quem sabe, sem mesmo terem cama para dormir nessa própria noite.
Estes aqui, fotografados com brio pelo Manuel na República de São Domingos são em tudo semelhantes—mesmo nas cores dos galos, nas cores das paredes da arena, na atmosfera agonística que se respira no ar—são em tudo parecidos com os que eu conheci no Brasil. Um dia, viajando no agreste de Pernambuco, a noite caiu inesperadamente e encontrámo-nos a percorrer uma longa e isolada estrada secundária no escuro. Ora, a regra número um da condução no Brasil rural é nunca andar na estrada à noite. Vem um buraco do outro lado da curva, parte-se o eixo e, bom, depois é melhor nem descrever, porque o bandido acaba sempre por chegar e ninguém que não seja bandido abrandará para nós, aconteça o que acontecer.
Em suma, vagamente assustados com a situação, decidimos dormir no primeiro lugar que encontrássemos e assim foi … Bom, mas essa é uma outra longa história para contar noutro dia. Na manhã seguinte, enquanto a Mónica tomava o café da manhã, eu saí com o sobrinho da dona à procura de quem pudesse trocar uma mísera nota de 100 Reais. É que, por ali, 100 Reais é uma soma grande! Percorremos de lado a lado a pequena e encantadora vilinha do Limoeiro, alcantilada como um presépio na encosta. Finalmente, à terceira loja, lá havia quem tivesse troco. Entretanto, o sobrinho da dona só conseguia falar de galos. Ia haver um encontro nessa tarde e ele tinha um galo que, de certeza, iria ganhar e estava entusiasmadíssimo. Queria que nós ficássemos para ver e, em boa verdade, vontade não faltava, mas tínhamos um voo nessa mesma tarde para São Paulo. Ele explicou-me que as corridas de galos estavam agora proibidas mas que eram a coisa mais interessante que se passava em Limoeiro. Ia apontando as casas dos principais criadores de animais.
A curiosidade ficou. Por isso, uns anos depois, numa tarde solarenga, fui com a minha assistente da Universidade Federal da Bahia—a sempre intrépida Ula—ao principal recinto de lutas de galos da cidade. Mas estava tudo fechado. Um dos principais publicitários associados ao PT tinha sido apanhado numa rede de corrupção e, como ele era um famoso apoiante das lutas de galos, a polícia tinha decidido implementar com rigor a velha e nunca muito implementada lei contra os galos. Fomos postos polidamente na rua. E quando perguntei como podia eu ver uma luta, a resposta foi irónica: “Homem, qualquer taxista o sabe levar a uma, se você quiser mesmo! Veja no que se mete!”
Então, no dia seguinte depois do almoço, decidi-me experimentar. Fiz parar um táxi e disse: “Por favor, leve-me a uma luta de galos!” Antes que acertássemos no que “realmente” eu queria, a coisa foi demorada. Mas acabei por ser levado a uma parte recôndita da cidade—onde nunca tinha ido e onde nunca voltaria a ir—e foi-me dito, depois do táxi parar: “Se quer mesmo ir, é logo ali, a segunda porta a seguir a essa esquina.” Aqui e ali havia homens encostados às paredes e não gostei nada da atmosfera geral. Mas, quando voltei a olhar para trás, o carro já tinha desaparecido—o próprio taxista estava amedrontado. Bati a uma porta de madeira rústica e perguntei se era mesmo ali que havia lutas de galos. Foi-me dito que não—mas era difícil esconder a coisa, porque havia uma atmosfera de excitação no ar, homens que entravam e saíam, muitas gaiolas cheias de animais vistosos empilhadas contra as paredes.
Por fim, depois de muitas conversas entre eles—e como eu já não tinha caminho seguro para trás—lá me deixaram entrar. Sentei-me numa bancada e fiquei à espera. Homens e galos iam e vinham mas não acontecia nada. O meu lado da bancada estava vazio. Do outro lado, todos apinhados, olhavam para mim. Por fim, um homem baixo e de para aí uns sessenta anos de idade, muito apinocado num fato cinzento brilhante e com um chapeuzinho claro de abas curtas, levantou-se e veio sentar-se ao meu lado. A conversa sobre quem eu era foi longa. O meu cartão de professor foi cuidadosamente vistoriado e passado de mão em mão. Ele acabou por certificar-se que eu era genuíno … genuinamente parvo, penso que foi o que lhe passou pela cabeça. Acabado o interrogatório, virou-se para mim e perguntou: “Mas moço, então porque se vestiu assim dessa maneira?”
Ora eu, não sabia que estava vestido. Muito pelo contrário, eu tinha posto aquilo que eu achava que era o pão-nosso-de-cada-dia indumentário da Bahia: umas sandálias de couro, umas jeans e uma t-shirt azul escura por fora das calças. Perante a minha perplexidade, rindo-se muito, o homem explicou: “Mas então não sabe que é assim que os polícias se vestem, com uma camisete azul escura, quando vêm fazer uma rusga?”
Levou-me para a bancada da frente e quase logo começaram as rodas. Galos eram vistosamente apresentados pelos donos; eram apetrechados com lâminas afiadíssimas nas suas patas; eram acicatados; lutavam; e, por fim, no meio de muito sangue, morriam uns e outros saíam em glória para uma espécie de gaiola-hospital, porque nenhum deles saía incólume. Nesse momento, passava dinheiro entre as pessoas com muitas disputas e ameaças nunca confirmadas de porrada. Havia uma comoção geral nas bancadas e servia-se muita cerveja. Mas logo de seguida, começava tudo outra vez com novos actores.
Francamente, ainda hoje não consigo reproduzir o que eu sentia. Sentia, sim, o cheiro a sangue e agressão; o horror de ver os bichos despedaçados pelos seus adversários sangrando e mexendo-se num estertor, já sem forças contra os muros de madeira da arena. Mas, ao mesmo tempo, também não era coisa de grande monta. Em casa de minha mãe, quando eu era pequeno, matavam-se as galinhas no pátio em preparação para o almoço. Não eram tão lindas como estes, mas era uma coisa corriqueira e mesquinha. Para quem já assistiu a uma corrida de touros, isto aqui era assim uma versão coquete em miniatura. Quando saí—caída já há muito a noite—fi-lo com prazer. Por um lado, contente pela forma franca, amistosa, genuína com que me tinham recebido; pelas muitas cervejas que tinha bebido de jogo em jogo com vencedores e vencidos. Por outro lado, contente por me libertar daquela atmosfera intensa de testosterona e agonismo que me mexia com o ritmo cardíaco de formas que não me deixavam descansado.
Só que, logo depois de eles me terem cumprimentado muito e feito muitos adeus, a porta voltou a fechar-se. Por essa altura, já não havia vivalma na praceta ao lado. Táxi, nem vê-lo e eu, ali parado, comecei a não gostar da ideia. Tive que andar ainda vários quilómetros por essas ruas íngremes e pouco seguras, vestido como estava de polícia (!), até finalmente chegar a uma dessas “estradas do vale” tão características da cidade de Salvador e apanhar um táxi para casa. Safei-me incólume, já não foi mau.
Se penso de volta na coisa, vejo que é a analogia entre o homem e o bicho que é ali celebrada. Como analogia, ela desculpa a violência do homem, valida-a, embeleza-a. Mas lembremo-nos: que violência e contra quem? Essa é a questão, porque isto são homens que não têm contra quem exercer a sua necessidade de afirmação pessoal senão contra as mulheres e os filhos. Tudo aquilo, com o seu aspecto brilhante, elegante e alegre, tem um outro lado sinistro nos cantos escuros dessas casas bahianas.
Ainda por cima é uma analogia complexa, que mistura paralelismo com continuidade. Por um lado, estes homens, ufanos dos seus lindíssimos galos, espelham-se na capacidade de violência que os seus bichos representam. Estão prontos a ameaçar as vidas dos seus queridos animais para poderem ter esse gosto de adrelina na boca quando os vêm lutarem pelas suas vidas perante inimigos valorosos. Por outro lado, eles e os animais misturam-se. Estão em contacto constante: beijam-se, afagam-se, enrolam-se um no outro, estão em constante simbiose física—como uma mãe com uma criança de peito.
Quando o galo deles ganha, eles “são” mais; existem mais. Mas quando perdem não é caso de passarem a “ser” menos. Pelo contrário, eles podem afirmar aos altos gritos a sua imerecida frustração. Essa maior existência potenciada pela luta, confirma a essência que lhes falta tanto: eles passam todos a estar mais presentes. Presentes perante os outros, mas sobretudo perante si mesmos. Para quem vive aquela vida escrava—e “cativeiro” é mesmo a palavra que eles usam para qualificar a sua condição de trabalhadores braçais urbanos; para quem serve muito e ganha pouco e, no fim do dia, sabe que o que fez não traz consigo qualquer glória; para tal gente, a luta de galos é uma fuga da escravidão, uma compensação para a escuridão da miséria, da não-presença de quem sofre. Mais que isso, é uma maneira de ser bonito, reflectida nestes galos que, realmente, merecem ser vistos.
João de Pina Cabral
Sintra, Abril 2020
Galeria de Imagens
Fotos de Manuel Rosário
Yvette Centeno | 2020-07-13
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Entre estas lutas, que devolvem alguma dignidade à gente mais pobre, mas ainda com força para desafiar quotidianos difíceis, e a pompa das nossas touradas, há muito que dizer. Mas não é o momento.
Isabel Almasqué | 2020-07-13
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Belo texto, João, ilustrado pelas fotos sempre magníficas do Manuel. Lembro-me bem desta atmosfera, simultaneamente frenética e tensa das lutas de galos em Samaná. Uma experiência, sem dúvida, marcante mas a não repetir.