Naquela noite, mais uma vez o homem com dificuldade em adormecer sente-se invadido por frases filosóficas, como se extraterrestres entrassem no seu cérebro.
– Com a noite de perfil a medir-me cada passo, recomeço ..: lembra-se do poeta e o seu cérebro martela …pedra sobre pedra, a juntar palavras,… recomeço… Não tenho outro ofício… – diz o homem recordando algumas estrofes. «Não tenho remédio», pensa também… e as palavras do poeta a fazerem sentido: ranho, baba, merda.
Era um maníaco – otimista, talvez, mais para o hipomaníaco, dissera–lhe o psiquiatra. Não lia 30 livros por noite mesmo em diagonal, como lhe diziam a brincar, mas lia muitos milhares de páginas… e escrevia também para não se esquecer dos seus pensamentos alucinantes.
Ainda assim a idade ajudara-o a clarificar posições e a definir estados de alma.
Não era muito para o depressivo… reagia, sonhava, lutava, andava quilómetros de insatisfação e intolerância, mas a noite de perfil media-lhe a capacidade de resistência, de resiliência, como agora se dizia, e lembrava-se da música das primeiras chuvas sobre o feno, no fim do verão, quando ia às cavalariças, do calor do verão e das cigarras no campo da sua infância, da praia e do mar ao longe a rugir – lhe ideias.
Recorda como num sonho o senhor Formiga, com as mãos rudes de cozer redes a mergulhá-lo nas ondas, lembra-se do Formigão, como era conhecido entre as crianças, que em bando, em vão, tentavam fugir dos seus braços experimentados a controlar tempestades. Lembrava-se de o ver nas férias de verão, a agarrar um a um, como o gigante da história que a empregada Alice lhe contava antes de adormecer e a mergulhá-los como se fossem gatos acabados de nascer.
Recordava-o durante a noite, onde a luz coalha e o cérebro aprimora, e vê claramente o seu rosto tisnado e uma figura enorme, rodeada por umas senhoritas mães de família, que em gritinhos divertidos lhe pagavam parte do seu sustento estival, com umas quantas moedas, para mergulhar os seus catraios nas ondas alterosas, onde hoje se faz surf internacional e se realizam concursos acrobáticos.
Com um «zum-zum» nos ouvidos era mergulhado três e quatro vezes numa confusão de águas frias e escuras, quase sem tempo para retomar o fôlego, numa asma induzida pelos banhos salutares do senhor Formiga e nesses momentos via-se de novo na barriga da mãe, antes de voltar à superfície e vir passar férias para aquela praia, entre o éter e o fogo misturados, no início da época estival.
E muito mais calmo já deitado na areia a percorrer os sonhos, olhava o céu de olhos semicerrados e pensava que este planeta está entre muitos outros e é só um pontinho como ele no meio do oceano da sua infância.
Sempre marcara nos astros o seu roteiro: vinte quilómetros para ter um cão, ou seja para obter felicidade, trinta quilómetros para concluir o curso, quarenta quilómetros para ser assistente da faculdade e outros mais para ser o responsável daquele ofício? O Santo Ofício? Ser o professor da cadeira?
Obtivera com esforço o primeiro dos seus sonhos definido em quilómetros de felicidade, só depois de ter o seu nome no quadro de honra, exposto na pauta do liceu de rapazes onde o avô fora reitor.
Odiava pautas e nomes inscritos nelas, com as respectivas notas. Lembravam-lhe um miúdo de quem era amigo, talvez o seu único amigo no liceu, que tivera todas as notas negativas… e dissera aos pais que estava no quadro de honra, antecipando o algarismo um a cada valor real, se tinha sete dizia dezassete, se oito informava ser dezoito e que depois fora com uns tios para os Estados Unidos… a muitos quilómetros de distância.
O rapaz nunca mais voltara a Portugal, nunca mais quisera ver ninguém que lhe lembrasse esse dia em que mentiu, para não matar a mãe de desgosto, quando ela afinal descobrira a verdade da pauta e tomara uns comprimidos para acalmar.
– Nem sequer um filho decente conseguiu parir! – dissera-lhe o marido, que era um homem de poucas palavras, e ela tomou muitos… mas mesmo muitos calmantes.
O Outono não amadurecera para ela e o amigo partira com os tios maternos para as Américas. A pauta fizera-lhe perder o seu primeiro amigo.
Mas o seu primeiro sonho de felicidade conquistada tinha nome. Era Max, um Labrador preto, de olhos meigos. Ensinara-o a comer com garfo e faca.
Um sonhador especializado! Quando sentia fome ia buscar os talheres, que retirava da gaveta, colocava-os delicadamente lado a lado junto à taça de comida e comia tranquilamente, naturalmente com a boca, mas a intenção era tudo, e demonstrava a metáfora da aprendizagem, do esforço e do trabalho especializado.
Não é qualquer um que se pode vangloriar de, com persistência e capacidade de trabalho, poder levar o seu cão a trazer os talheres para a mesa ou seja para o chão, quando vai comer.
É certo que todo esse processo de acreditar que o esforço tem o seu consequente resultado era um conceito adequado a uma época e com a idade e à medida que o seu cão se esquecia dos talheres, foi tomando consciência de que outros factores intervinham na edificação do seu carácter de cão e na sua especialização e na noite inclinada de melancolia, acabara por perceber que o que realmente procurava no mundo era a maravilha.
A maravilha de poder ser um sonhador. O seu cão olhou-o de perfil, quase feliz por ser tão bem compreendido, que nem precisou de persistir naquela história penosa dos talheres, como se fosse um homem ou, melhor, um cão de negócios, cheio de comportamentos previstos e estereotipados.
Naquele dia podia comer com as patas, espalhar a comida no chão da cozinha, comer com a sua boca de cão ou simplesmente deitar-se a roer um osso e a beber o seu copo de conhaque.
Encostou o focinho delicadamente na perna do dono que, com os óculos caídos e o copo com algumas gotas do delicioso néctar que esvaziara da garrafa tombada aos pés da manta sobre os joelhos, adormecera no sofá, a sorrir, como que aquecido ao sol.
O essencial na embriaguez é o sentimento de acréscimo de energia e plenitude. O seu dono bebia durante a leitura e quando escrevia uns documentos. Agora lia numa espécie de tablet, oferecido no aniversário pelos alunos da faculdade, parecido com um livrinho e com os livros nele incorporados, desde as novidades aos mais preciosos e difíceis de encontrar, obtidos por metade do preço.
A literatura é sobretudo uma disponibilidade fisiológica e uma embriaguez, como a sexual, e escrever era a sua pulsão, era a sua especialidade, como se estivesse embriagado, mas sem o temor de situações embaraçosas, pensou Max.
Por outro lado o homem meio adormecido, meio atordoado, pensou em cumplicidade com o pensamento do Max:
«A mente para se sentir poderosa tem de ser intensificada pela embriaguez, pois de outro modo não se chega a nenhuma arte».
Assim o é, com a embriaguez que sucede a todos os desejos: a embriaguez do evento, da competição, da vitória. A adrenalina que se esvai, quando se está em período de supressão, mas que se eleva ou embriaga os sentidos quando nos especializamos em desejos.
Hoje o homem sonha com outro poeta. Percorremos os sonhos e marcamos nos astros dez quilómetros do nosso percurso.
O cão entendeu, com o seu sentido extraordinário de cão, o que ele sonhava, com a premonição dos acontecimentos, tal como todos os animais, que antecipam as catástrofes e fogem antes do terramotos ou guerras e se escondem nos esconderijos, depois procurados e encontrados pelos homens. Por isso há sempre ratos nos esconderijos por antecipação.
Adormeceram ambos lentamente, dono e cão apaziguados, com um sorriso nos lábios. «Amanhã tirarei o curso de sonhador especializado», pensou em voz alta o homem, no meio do sonho.
E acrescentou:
– Não é um curso espacializado Max, como falou o poeta, que desejava voar para os astros onde marcava os quilómetros.
O curso especializado em sonhos será cumprido cá na terra. E o cão condescendente pôs-lhe a pata no ombro.
Leonor Duarte de Almeida
Abril, 2018