Tinha chovido torrencialmente todo o dia, agora era a acalmia de uma noite de Verão africana.
Sentada à porta de um pequeno barracão que funcionava como messe de oficiais, eu entretinha-me a olhar o céu, beber cerveja e comer amendoins, servida pelo soldado que era o criado de mesa. Tinha passado a tarde a ler no quarto, e o espectáculo daquela noite era redentor. Ao olhar aquele céu, esquecia-me que vivia dentro de arame farpado. Que havia guerra a poucos quilómetros. Que há oito noites atrás tinham caído “morteiros oitenta e um” dentro da companhia. Que tinha morrido um soldado que descansadamente ouvia radio na sua hora de descanso, deitado na camarata. Que a cinco minutos de jeep dali, havia uma aldeia que visitávamos em passeio ao fim do dia, onde as crianças à porta das tabancas mostravam as suas barrigas inchadas de fome, só alimentadas por uma tigela de arroz por dia. O Matos, o soldado, entretinha-se a servir-me, pois não havia mais nada para fazer.
Encontrava-me numa companhia do exército português, um aquartelamento junto ao rio Encheia, na exprovíncia portuguesa da Guiné.
O soldado que me servia, era completamente fã do comandante da companhia que, aliás, era o meu marido. Um miliciano “apanhado” para capitão, como acontecia a muitos naqueles tempos da guerra colonial.
Na noite anterior o comandante tinha saído para o mato com um grupo de homens. Senti-os partirem por volta das duas horas da manhã. Não tinham objectivo certo, era apenas uma operação de «reconhecimento de zona». Tinham ido a dez quilómetros para leste, onde só existia mato, apenas mato. Nenhuma aldeia próxima. Esperavam encontrar “vestígios” de turras. Mas nada! Apenas encontraram um jovem de doze ou treze anos de idade, sozinho naquelas redondezas.
Ouvi-os chegar ao entardecer. Um grande alvoroço! Vozes e risos.
O Matos pôs-me ao par do que tinha acontecido. O jovem foi apanhado para informar se havia algum acampamento do P.A.I.G.C. na zona.
Estou sentada à porta da messe, em frente ao gabinete do capitão que fica do outro lado da parada. O rapaz é trazido por um soldado que o agarra pelos cabelos. O Matos ri-se e diz-me: «o gaixo vai xer interrogado». O coração aperta-se-me. Queria poder correr pelo aquartelamento fora, passar os sentinelas e fugir não sei para onde. Para o meio do mato, era a única hipótese…
O tempo vai passando e aquele “gaixo”, como diz o Matos, continua dentro do gabinete do comandante. O “gaixo”, não é senão uma criança de doze anos, que teve o azar de estar numa zona ainda controlada pelo o exército português. Entretanto o Matos vai-se divertindo e pensando no “gaixo lá dentro. «Ai não que não dixes», diz ele com a sua pronúncia transmontana, «agora vais dixer onde estão aqueles filhos da mãe e nosso capitão amanhã já lhes trata da saúde». Mas para ele, o mais emocionante foi quando do gabinete do capitão, saiu um soldado que voltou com um cinturão na mão. «Agora vai apanhar até dizer mesmo todinho». E ria-se muito com esta cena do cinturão.
Aquele rapazinho deve ter confessado tudo o que sabia e o que não sabia sobre o hipotético acampamento do “inimigo”. O comandante saiu do gabinete satisfeito. Objectivo conseguido! Havia dados concretos sobre um acampamento “turra” não muito longe dali.
O negrinho sabia bem o que esperava no dia seguinte. Ir com um grupo de portugueses indicar o lugar onde estavam os combatentes. Talvez fosse a sua condenação á morte. Já tinha acontecido a outros “informadores”.
Partiram no dia seguinte, outra vez às duas da manhã, com o rapaz a indicar o caminho. Tinha-o visto a sair do gabinete, de tronco nu, com as costas marcadas pelas chicotadas do cinto do capitão.
Tinha o medo de quem traiu estampado nos olhos, naqueles olhos negros imensos, saídos dum corpo escanzelado. Medo que lhe fazia tremer as pernas, medo da morte que talvez o esperasse de volta a casa.
E eu estava ali a beber cerveja e a comer amendoins, a passar o tempo, e o soldado a rir-se muito. Havia tão pouca coisa divertida naquele sítio!
Junto a minha casa, numa praceta que fica ao lado da Casa dos Bicos, juntam-se nas noites de Verão centenas de africanos. Vêem frequentar cursos de formação nessa altura do ano. Estão hospedados na pensão da casa amarela e em muitas outras pensões que ainda existem na baixa. Outros vêem dos subúrbios onde vivem, para saber notícias frescas da sua terra. Ali se encontram numa confraternização calma. É um murmurinho de conversas em crioulo. Falam e riem entre eles sem olharem para quem passa. Formam um mundo à parte de tudo o que os rodeia.
Mesmo assim, quando atravesso a praça para ir apanhar um táxi, tento não olhar para as suas faces. Tenho medo, muito medo, que no meio daquela gente haja alguém que me olhe de frente. E que tenha uns olhos negros imensos, que me acusem pelo que eu assisti naquela noite quente e tranquila de Encheia, em 1973. Enquanto passava um pouco da noite a beber cerveja e a ouvir as graçolas do soldado Matos!
Medo de que me acusem do crime de ter sido apenas uma espectadora passiva de um espectáculo inqualificável.
Manuela Carona
Abril, 2018
Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário