A menina desceu o degrau da porta de casa com um saltinho abrupto, as saias brancas rodadas e compridas volteando; na cabeça, entre os caracóis castanho-claro, uma grande flor azul-eléctrico com um botão vermelho-vivo no meio; em torno aos ombros, um xaile brilhante; nas faces, uma maquilhagem que, pelo excesso, não conseguia ser obscena. O Carnaval de Cádiz amadurece e, por baixo das mil cabeças tontas, começa já a vislumbrar-se o chão, pejado de sacos de plástico molhados, enrolados em garrafas de rum, moscatel barato ou Coca-Cola. Rolam perigosamente garrafas de cerveja aos nossos pés. Os grupos de homens e mulheres – ou, a bem dizer, essa diversidade pessoal inclassificável – gesticulam com ênfase teatral e grotesca. Tudo, tudo em cores berrantes, excessivas.
A criança saltou da umbreira da porta e rodopiou, feliz, no meio da família sorridente. Nesse momento, algo em mim impelia-me a querer estar ao lado dela. A Mónica fotografava: “Tira uma foto comigo!”, pedi-lhe. Mas a mocinha achou melhor não, não quis ser afastada da proximidade amorosa da família. Olhou para mim incerta e logo seguiu de mão dada com a mãe. Com esse saltinho enfático, tinha conseguido alertar-me para a felicidade de ser o centro da atenção dos que amamos. Senti uma ponta de tristeza, porque o seu afastamento me distanciava da sua alegria. Mas logo fui distraído pelo sorriso contagioso de mais alguém; e ainda de mais alguém; e, de seguida, dos membros de um coro que, no seu grotesco empenho, especados em frente a um qualquer portal de casa antiga, nos divertiam a todos, sem mesmo conseguirmos entender o que diziam, pelo serrado que é o dialecto gaditano.
As ruas pejadas de pessoas a cantar, gritar, rodopiar, sorrir embrulhadas nas suas improváveis vestes de ocasião. Por vezes, parece quase que não teremos por onde fugir; que os nossos corpos todos se misturarão numa massa informe. Chega a dar medo: para que local incerto estaremos a escorrer? Quem sabe se é homem, se é mulher? Quem sabe se é um homem sentindo o que uma mulher sentiria se fosse homem; um pirata sentindo o que sentiria um pirata se fosse escriturário do BBVA; um soldado romano a cavalo do corpo de um professor de escola; um desempregado feito Guarda Civil. Somos todos fotógrafos e modelos, amados e amantes uns dos outros nessa grande mutualidade carnavalesca. Só posso imaginar que devem ser aos milhares os telemóveis roubados, perdidos, trocados por engano. Todo um emaranhado de redes.
E logo mais adiante duas cabeças juntas: uma enorme cabeleira lilás aos caracóis esvaindo-se em todo o seu brilho plástico sobre os ombros de uma elegante jovem que, por sua vez, se debruça sobre a cabeça de um fulano – quem sabe irmão, quem sabe amigo, quem sabe amante – que chora perdidamente com a cabeça no regaço dela. E eu, deste lado de cá, sofro ao pressentir o que é ser tão falhado tão cedo na vida. De seguida, insurjo-me por ver o gesto belíssimo dela a ser perdido no bueiro mental de um alcoólico incontinente a quem a irmã, a amiga, ou, sabe-se lá, circunstancialmente, a amante não poderá cobrir durante muito mais tempo com a sua cabeleira longa de maravilhosos caracóis lilás-plástico – qual aura dourada e rendada, pontuada por lágrimas de diamante de mais uma Madona andalusa. Sou ele, sou ela e sou eu próprio no que eles partilham entre si.
E agora chove. E logo o sol sai laranja, recuperador, de entre nuvens de um azul-cinzento profundo sobre o forte de Cádiz. Ali, diz a sinaleta enferrujada, há muitos séculos, houve um templo fenício à Deusa Astarte (protecção, dizem, para problemas de fertilidade, sexualidade e guerra … impressionante mistura de dons). Um pôr-de-sol molhado mas quente para a nossa alegria inconstante, nessa exuberante festa em que a única música que nos oferecem é a que soubermos nós mesmos gritar.
João Pina Cabral
Março, 2014
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Foto e video de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário
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