Uma seta azul-escuro traçada em espuma de leite; papel de embrulho debruando o céu azul; o halo anil-quase-branco do homem-insecto em fuga livre; luzes que se mexem como estrelas no ultramarino da noite – vastidão tracejada de um universo intocável e distante mas, finalmente, mensurável. Cada vez que um record é atingido, o que antes era indeterminado, passa a ter direção. No momento da vitória, por meio de uma máquina, congela-se o espaço, para-se o tempo. Arquivado numa medição/mediação, o movimento incerto da mota vira traço sólido no tempo, esculpido no mundo para lá das incertezas da consciência humana.
Tal como na música, a corrida mexe o interior humano mas exige muito artifício. Por isso estas motos, o seu instrumento, são místicas mas não têm segredo. A barriga delas é aberta ao sol de cada vez que vão correr. É como um violino; o segredo não está na madeira, nas cordas, na cola … está na arte.
Por isso blues: não só na cor dominante mas sobretudo no ritmo sincopado; na vida que já foi vivida, na perda de consciência, no deixar andar. E blues também, afinal, porque todos esses traços azuis vão acabar por esvair-se. A velocidade é um vício erótico. É como se eu fosse tão rápido, tão rápido que deixasse o meu ego para trás. Como os momentos finais do orgasmo; só depois é que eu sei. O impulso afasta a consciência, a competitividade afasta o medo: o ego do condutor não acompanha a aceleração. Só no fim da pista branca – recta, solta, cega – é que o ego volta a apanhar o dono, mesmo, mesmo antes do motor derreter. A parte erótica é esse risco da morte líquida do homem e da máquina; o risco ao mesmo tempo sublime e sórdido do ego não voltar. Como eles explicam, o momento é de facto awesome, o que no inglês americano tanto significa ‘impressionante’ como ‘arretado’ no sentido baiano da palavra.
Entre a vastidão ultramarina e o risco da esferográfica, entre a emoção e a arte, há um papel. O ponto de encontro entre a natureza pristina e o mundo mecânico é o world speed record, um arquivo. Esse record não representa o mundo; ele é a parte do mundo onde o blues da vida de cada uma destas pessoas se inscreveu. Toda esta gente se move em torno a um record book que, sem dúvida, existirá em qualquer parte, mas não importa onde. No fim, o motor que faz mexer Bonneville não é feito de metal mas de papel. Apesar de não estar escondida, nem ser secreta, a lista dos prémios, o arquivo existirá algures sem que seja preciso ir consultá-lo. Por isso não é preciso cerimónias, cada um dá a si mesmo o seu prémio – para quê medalhas e cheques? Basta saber … basta confiar que, algures, há um livro de records; há um sistema de medição; há um júri; há uma bitola; há algo que não é só opinião humana; algo que é coisa, que é sólido; algo que fica para além da passagem do tempo e do livre fluir do espaço. E é algo que não é vulgar, não é só daqui, deste pequeno local de Bonneville (com o seu nome surpreendentemente corriqueiro!). O arquivo não é vulgar porque é de todo o mundo, para todo o tempo: é um world record.
Só que, como em tudo o que é humano não há finais, só há entretantos. No preciso momento em que eu acho que passei para além da fluidez da vida, a vida volta a impor-se. Afinal, a incerteza nunca me tinha deixado. Na manhã seguinte, a existência mesquinha de Bonneville torna ao de cimo, volta a haver saudade. Na manhã seguinte, outra pessoa vai querer o meu record. Aliás, ainda não tomei o café e já eu próprio quero superar o meu record. Tudo recomeça de novo para o ano que vem!
E voltamos à pergunta óbvia: que é que torna possível essa esperança, essa aceleração do ritmo cardíaco que se ouve nas vozes dos que falam com a Minnie e o Manuel. Qual a causa dessa saudade esfogueada de quem espera pelo record que ainda aí vem? E a resposta é óbvia: o que torna possível essa esperança é a crença que é possível superar o record; fazer mais, fazer melhor.
Uns são mais outros menos ricos, mas todos estes cinquentões têm por igual o conforto escrito na cara; o conforto de quem pode atrasar-se a pagar a hipoteca da casa só para poder correr um dia por ano numa máquina inútil e desconfortável, como uma delas explica ao Manuel. Eles e elas sentem que têm razões para acreditar que ainda há mais records a conquistar, que amanhã vai haver mais máquina e melhor, que ainda há terra para crescer, que os dólares não vão acabar.
Eles podiam não acreditar nisso. Podiam achar que há limites para a velocidade, que dentro em breve não haverá mais records a bater, que os dólares são um bem limitado, que a humanidade passou para lá dos limites terrenos da sua sustentabilidade. E há muito quem tenha boas razões para pensar assim… Se os cinquentões das motos não acreditassem no progresso, não faria sentido esperar por mais records, não faria sentido continuar a correr. Esse world record seria mesmo um verdadeiro world record e, então, trás!, mais nada. Por fim, seria inútil correr e as águas cristalizadas do lago salgado deixariam de ter traços azuis inscritos; deixaria de haver faróis brancos a pontuar a madrugada ultramarina.
A crença no progresso é o sangue da coisa: o vermelho das motas, o vermelho dos fatos, o vermelho das caras alegres com bourbon. O sangue do evento é a bandeira nacional americana, onde as estrelas que pontuam o azul escuro estão rodeadas pelos sulcos vivos do vermelho imperial. Estes vermelhos são a crença no progresso; são o sangue da utopia que faz com que todos sejam bem-vindos desde que participem na conquista desta terra ocidental.
Entre o azul ultramarino do ideal e o vermelho sanguíneo da vida, o branco purificador do sal é o chão da utopia moderna. Entre o ilimitado e o traço, entre o êxtase da corrida e as cervejas da vitória, o jogo de cores revela, afinal, toda uma metafísica. O que parecia ser uma brincadeira sem implicações, é por fim uma cosmogonia, uma arquitetura do mundo. Mas para nós europeus que somos mais velhos no coração, fica a pergunta: por quanto tempo mais se ouvirão ainda os clarinetes da glória moderna? Por quanto tempo mais esta febre nas ondas salgadas do ideal?
João de Pina Cabral
Março, 2014
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Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário