De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Mudam-se os medos, mudam-se as vontades…

A espécie humana viveu sempre rodeada de ameaças. Para além das catástrofes naturais e das guerras, diversas pandemias assolaram a Humanidade ao longo dos tempos, chegando a pôr em causa a sua sobrevivência. Uma das mais graves foi a peste negra no Séc. XIV que dizimou 200 milhões de pessoas, seguida da pneumónica que provocou cerca de 50 milhões de mortos, da gripe asiática que fez mais de 1 milhão de vítimas mortais, da epidemia da SIDA que vitimou entre 25 e 30 milhões, para não falar de outras, de menor impacte, como as pandemias de cólera e de febre amarela ou, mais recentemente do Ébola, da gripe A, do SARS ou da peste suína.

Todas elas, sem excepção, confrontaram os seres humanos com o medo da morte e com a tentativa de arranjar uma justificação mais ou menos plausível para fenómenos imprevistos e aparentemente inexplicáveis. À falta de melhor, a ira dos deuses serviu de explicação durante longos períodos, mantendo a Humanidade debaixo do temor do castigo divino e do pavor do inferno.

Actualmente, apesar dos extraordinários avanços científicos e tecnológicos nos permitirem identificar os microrganismos cada vez mais rapidamente e sequenciar o seu genoma no intuito de conseguir terapêuticas ou vacinas eficazes, a espécie humana continua à mercê dos caprichos da natureza e duma qualquer e inesperada mutação viral. E se a ciência nos permite compreender, cada vez melhor, as leis que regem o mundo em que vivemos, o facto de nos sentirmos impotentes perante as forças da natureza, traz sempre à superfície a nossa dimensão transcendental, relegando para segundo plano os outros medos que habitualmente pairam sobre o nosso quotidiano: medo do fisco, do desemprego, da velhice, da polícia, do buraco de ozono, das alterações climáticas ou, até para alguns, o medo de não ser rico ou famoso.

Perante a nova pandemia que nos ameaça, as energias da sociedade canalizaram-se em uníssono para a sobrevivência de todos e de cada um de nós. Tudo o resto passou a ser secundário. Num verdadeiro cenário de ficção científica, inimaginável até há bem pouco tempo, foi como se, de repente, tudo se clarificasse e não restassem dúvidas a ninguém, acerca do papel de cada um neste combate contra um inimigo invisível, imprevisível e potencialmente letal.

Ainda há bem pouco tempo, a lei da eutanásia estava na ordem do dia. Como sempre, esgrimiram-se muitos argumentos: a liberdade individual, o valor sagrado da vida, o direito a morrer com dignidade, a ameaça da “rampa descendente”, os cuidados paliativos, a alternativa do suicídio assistido, o papel dos médicos, etc, etc. E, no entanto, algumas semanas depois de termos estado tão empenhados a discutir quando e como queríamos morrer, o nosso único pensamento é agora viver. O medo de não termos a liberdade de morrer transformou-se, de repente, no medo de não conseguirmos sobreviver.

A actual pandemia de Covid-19 é bem demonstrativa de tudo isto. Embora os cientistas chineses tenham identificado este novo coronavírus em tempo record e nunca, em situações anteriores, se tenha avançado tanto em tão pouco tempo, o que é certo é que a tecnologia deste microrganismo é bem mais sofisticada que a nossa. Graças a um sistema de chaves que consegue abrir as fechaduras das nossas células, esta pequena criatura de 60 nanómetros, faz de nós gato sapato e mete toda a nossa arrogância tecnológica num chinelo.

Nunca, na Europa, se tomaram medidas de saúde pública e de contenção social tão drásticas como aquelas a que estamos agora a assistir.

A força do vírus é tal que conseguiu pôr o mundo do futebol em sentido e impor o que até agora parecia impossível: jogos à porta fechada, estádios vazios e o desaparecimento, como por magia, dos inúmeros comentadores televisivos. Até a Igreja, ao contrário do que fez na altura da pneumónica, em que apelou à oração pública e à penitência, aconselha agora os fiéis a assistirem à missa através da televisão.

Por outro lado, o súbito abrandamento económico, com a paragem das indústrias mais poluentes, as rigorosas restrições impostas ao turismo e às deslocações em geral, a paralisação dos aviões, dos paquetes gigantescos e da circulação automóvel veio demonstrar que um vírus pode conseguir, em semanas, o que repetidos e sempre incumpridos acordos sobre redução das emissões de CO2, não tinham conseguido até agora. Também o encerramento quase total do comércio teve um efeito imediato no nosso absurdo consumismo diário, ao qual apenas escaparam os rolos de papel higiénico. Todos têm que prescindir do supérfluo e limitar-se agora a comprar e a viver apenas com o essencial. E até o facto da taxa de mortalidade desta doença ser bastante mais alta no grupo dos idosos, nos leva a pensar que esta pandemia poderá, de certa maneira, contribuir para aligeirar o problema tão candente das nossas envelhecidas sociedades. Resta agora aos mais novos fazerem o seu papel.

É como se este novo vírus tivesse como missão repor um equilíbrio global há muito perdido. É como se tudo voltasse de repente ao seu lugar e tornasse a adquirir proporções equilibradas, há muito esquecidas.

E apesar das evidentes consequências trágicas desta crise, quer em termos sociais quer económicos, o que é certo é que depois de passada a tormenta, muita coisa na nossa vida irá mudar.

O facto de, pela primeira vez, algumas pessoas se afastarem de nós como se fossemos seres estranhos, só por estarmos a usar uma máscara na rua, faz-nos subitamente sentir na própria pele o problema da segregação e da discriminação social.

Por outro lado, o facto de estarmos confinados ao nosso espaço doméstico por tempo indeterminado, obriga-nos necessariamente a parar para pensar. Vemo-nos subitamente, 24 horas por dia, face a face com os nossos familiares e sobretudo face a nós próprios. O tempo que, invariavelmente, nos faltava no meio do frenesim do nosso dia-a-dia, temo-lo agora de sobra para ler, ouvir música, escrever, ver televisão, dormir, arrumar a casa, cozinhar, estar com os nossos filhos, irmãos ou pais, ser solidários com os vizinhos ou com quem precisa, em suma, para criar novos hábitos e viver a vida de outra maneira. Paradoxalmente, agora que somos obrigados a manter a distância social e a utilizar ao máximo as possibilidades da comunicação virtual, damo-nos de repente conta do valor insubstituível das conversas olhos nos olhos, dos abraços reais e dos contactos “ao vivo”.

Todas as moedas têm cara e coroa. A coroa deste vírus pode-nos matar. Resta-nos esperar que a cara nos possa transformar.

Isabel Almasqué
Março, 2020

Fotos de Manuel Rosário

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Escrito por

Isabel Almasqué, Médica oftalmologista. Ex-Chefe de Serviço de Oftalmologia do Hospital dos Capuchos. Ex-Secretária-geral da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia. Co-autora de vários livros sobre azulejaria portuguesa.

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Últimos comentários
  • Esta espantosa experiência social vai ter resultados inesperados, insólitos, e surpreendentes, que pessoalmente espero com ansiedade,se eu sobreviver bato na madeira. Um deles será a queda do mito do crescimento. Porque sobreviveremos apesar da queda vertical do sacrosanto crescimento. E o endividamento generalizado levará ao bail-out do cidadão comum, e não apenas das empresas financeiras. Uma revolução está na incubadora. Ignoro o que aí virá. Uma Fénix libertadora ou um Aborto Teratómico. Estou um pouco apreensivo.
    Mas fico optimista depois de ler o que a Isabel escreveu. A inteligência humana não é atacada pelo coronavirus,que em si não resulta numa encefalite. E as Isabéis do mundo salvar-nos-hão.

  • Se as Isabéis deste mundo nos pudessem salvar, estávamos nós bem. Pela minha parte, vontade não me falta. O que seria bom é que o coronavirus trouxesse alguma inteligência a muitas cabecinhas que andam por esse mundo a dizer patacoadas. Let’s hope.

  • Como sempre uma reflexão notável sobre o momento que atravessamos. Temos saudades é certo do convívio que agora nos proíbem, para o bem geral.
    Discutia-se o modo de morrer (ou de matar?) Pois agora lutamos por viver…Será aprendida a lição? Com Isabel Almasqué há esperança no horizonte.

  • Chapeau, cara Isabel : é reconfortante e animador ler o teu belo e desassombrado texto, numa reflexão sábia e generosamente partilhada! Abraço grato, à bientôt!

  • Um clarão de luz no meio da cegueira do momento..

  • MUDAM SE OS MEDOS MUDAM SE AS VONTADES

    SUPER TEXTO SÓ PODIA Covdi -19 MUITA OBJECTIVIDADE

    SUA FÃ INCONDICIONAL SÓ ESPERO QUE NO MEIO DESTA TRAGÉDIA ALGUMA COISA TENHA MUDADO OS VALORES DA VIDA