Há quatro séculos e tal os índios da América do Norte contactaram pela primeira vez com europeus. O que aconteceu desde então dava para encher dezenas de livros. A luta contínua e desigual, o desenlace previsível. Os crimes foram europeus. A superioridade material e cultural foi decisiva. Mas retrospectivamente, quanto mais se lê sobre o assunto, mais difícil é resumir tudo ao lugar-comum Brancos Maus-Índios Bons. O processo geral parece ter sido inevitável, com tragédias, dramas, morticínios, traições. Houve também actos de abnegação e caridade.
Faltou aos conquistadores a Igreja de Roma e uma politica estrangeira a acompanhar o processo, como na América do Sul. Faltou aos nativos uma cultura maleável que lhes permitisse adaptarem-se aos europeus. Cada tribo falava uma língua ininteligível para as outras tribos. Tinham em geral uma tal predisposição para violência intertribal, que os europeus não tiveram dificuldade em virá-los uns contra os outros, quando necessário. Um membro de uma tribo apanhado a deambular em território alheio, era morto como regra. Antes da chegada do Colombo em 1325 o massacre de Crow Creek (486 mortos) foi perpetrado por outros índios. Os primeiros colonos notaram a dificuldade que eles tinham em conceber os outros índios como semelhantes a eles próprios e diferentes de animais. O nome de uma das tribos, na linguagem tribal, significava simplesmente ser humano em inglês.
A história dos Cherokee
Os Cherokee são historicamente a mais importante das Cinco Tribos Civilizadas (Cherokee,Chickasaw,Choctaw,Creek and Seminole). Medraram nos finais do Séc. XVIII e princípios do XIX. Ocupavam uma vasta área na intersecção das Carolinas, Alabama, Georgia, e Tennessee. Um número significativo entre eles era mestiço. Adoptaram o vestir dos europeus, tinham representantes no Congresso, escolas onde se ensinava inglês e aritmética e viviam em casas solidamente construídas. No auge da ”civilização” Cherokee, os miúdos índios tinham um grau de alfabetização superior ao dos colonos brancos circundantes. O sucesso económico na agricultura foi tal, que tiveram que usar escravos africanos, de que eram proprietários plenos como qualquer lavrador do sul naquela altura. E depois da invenção da escrita Cherokee, o grau de alfabetização geral foi tal, que tinham um jornal em publicação regular (o Cherokee Phoenix).
Quando os europeus chegaram à América do Norte havia 500 tribos distintas, falando 300 línguas diferentes pertencentes a 29 grupos linguísticos. Linguisticamente isolados, cada tribo era incapaz de entender as outras, e algumas dessas línguas eram tão abstrusas, que foram usadas na segunda guerra para transmissão de mensagens codificadas, como o Navajo (os Code Talkers).
Missionários franceses no Canadá lutaram pela preservação das línguas locais, e ainda hoje em dia algumas têm uma taxa de fluência de 100%. Mas muitas perderam-se para sempre. Nenhuma tinha escrita.
Mas no sul o Cherokee ainda é falado.
As letras e caracteres que usamos na escrita são sobretudo unidades fonéticas, sons isolados. Nas palavras onomatopaicas sugerem um sentido, mas são sobretudo unidades sonoras. Associadas umas às outras formam as sílabas, que em sucessão formam as palavras, a entidade semântica final. A mesma escrita é frequentemente usada em línguas diferentes, Português e Inglês, Arábico e Farsi (Irão).
Quando os fonemas numa língua são completamente diferentes dos usados nas línguas europeias, como em Cherokee, o uso dos nossos caracteres é impossível.
Os índios viviam fascinados com a capacidade que os brancos tinham de comunicarem uma mensagem, garatujando um símbolos numa folha de papel sem qualquer enunciação verbal, em silêncio. Chamavam a isso The Talking Leaves.
Um dia em 1821 um desconhecido chamado Sequoyah, que não falava Inglês, decidiu criar uma forma escrita em Cherokee. Como muitas línguas nativas, é duma complexidade incrível. Os fonemas são guturais, nasais, palatais, laríngeos, surdos ou vocais, breves ou prolongados. Dizia-se que o Cherokee era falado com o estômago. A sintaxe é ainda pior. Constituída sobretudo de verbos, o sujeito não tem género, o predicado contextual, 16 tempos verbais, os complementos e modificadores às dezenas, e um simples verbo pode ter centenas de formas.
O nosso bom Sequoyah tentou uma abordagem ideográfica. Nada.
A seguir uma fonética. Nada. Até que notou que podia reduzir tudo a 86 sílabas, com que podia compor todas as palavras Cherokee. Criou um caractere para cada uma. Ensinou um amigo e fizeram uma demonstração. Com o amigo ausente da sala, escreveu uma mensagem improvisada por um dos presentes. Alguém levou o papel ao outro lá fora. Após uns minutos, este entra na sala e enuncia a mensagem. Aplauso geral.
Toda a gente se precipitou a aprender a escrever. As famílias ensinaram as crianças em casa, e rapidamente cartas viajaram sobre a longas distâncias da nação Cherokee. Anúncios nas paredes, dichotes e mensagens apareceram por todo o lado. E o jornal cherokee apareceu.
Mas tudo isto teve um fim trágico. Rodeados por um milhão de europeus, os quatorze mil cherokees não tinham qualquer chance. Com o Indian Removal Act de 1830 do presidente Jackson, foram obrigados a empacotar tudo o que tinham, e arrastando com eles os escravos africanos, emigraram para o Oklahoma. Foi o triste Trail of Tears. Debaixo dum frio extremo, houve seis mil mortos, dos quais dois mil escravos. Para trás ficaram famílias desfeitas, os casamentos mistos eram numerosos.
Toda a história é excruciante. Pouco conhecida, porque nunca foi assunto de filmes em Hollywood. E todo o episódio é desconfortável. Mesmo o escrever sobre ele é desconfortável.
José Luís Vaz Carneiro
Tucson, Junho 2018
Foto do cabeçalho de Manuel Rosário