De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

O ladrão de estimação

O marido bem a puxava, mas ela ainda não estava pronta para caminhadas. Preferia ficar sentada no sofá da sala a observar os barcos que passavam no Tejo. Ainda não se conseguia concentrar muito tempo na leitura, mas lia três ou quatro páginas, pousava o livro, olhava para o rio e embrenhava-se nos seus pensamentos. Além disso o silêncio da casa fazia-lhe bem. Já tinha passado mais de um ano e só agora se sentia novamente gente. A depressão tinha-a levado mesmo ao fundo e viu jeitos de não voltar à tona. Os filhos convenceram-se que estava a ficar demente e o marido, provavelmente imaginou que ia ficar viúvo. Mas ela sentia um vazio interior difícil de explicar. Só a irmã percebeu que a doença era da alma e não do corpo, mas discreta como era, nunca fez perguntas. Por mais irracional e absurdo que hoje tudo isto pudesse parecer, aquela morte assim, tão repentina e inesperada, tinha-a apanhado desprevenida e foi como se lhe tivessem tirado o chão. Provavelmente, meteu-se-lhe na cabeça que aquela situação podia durar para sempre. Como é que foi possível? Ela própria nunca chegou a compreender como pode embarcar naquela história. O certo é que a coisa foi acontecendo, semana após semana, mês após mês, até se tornar numa rotina, quase num vício e depois num total desassossego à medida que se aproximavam os fins de semana. A relutância habitual que sentia em sair de Lisboa à sexta-feira, enfrentar o trânsito da ponte e desembocar numa casa desabitada, tinha-se transformado pouco a pouco numa ânsia permanente de partir. “Não te compreendo, dizia o marido, dantes era um castigo para te arrancar de Lisboa e agora estás sempre em pulgas para irmos embora. Vá-se lá compreender as mulheres…”

Ainda se lembrava bem do primeiro fim de semana em que ao meterem a chave à porta, se depararam com aquela confusão. A cozinha de pernas para o ar, pratos com restos de comida atirados a eito para dentro do lava-loiça, garrafas de cerveja vazias e copos sujos deixados por todo o lado, os roupeiros devassados, o conteúdo das gavetas espalhado pelo chão, uma das camas desfeita e a casa de banho com sinais de uso recente. Foi um choque indescritível, uma tremenda sensação de insegurança. Levaram algum tempo a recompor-se, mas havia que encarar a realidade. Aquela casa, imune durante tanto tempo aos recorrentes assaltos da zona, estava agora também na mira do assaltante misterioso, procurado em vão pela polícia e em quem nunca ninguém tinha conseguido pôr a vista em cima.

A cena tinha-se repetido mais duas vezes, sempre com as mesmas características. Curiosamente, ao contrário dos assaltos noutras moradias próximas, este caso apresentava particularidades um pouco insólitas: o assaltante comia, bebia, provavelmente também aproveitava para dormir, mas não se apropriava de nenhum objecto da casa. Apenas levava roupas do marido e, atrás da porta da casa de banho, deixava uma trouxa de roupa suja, calças, camisas e roupa interior.  Os danos materiais resumiam-se assim aos prejuízos relacionados com a sucessiva mudança das fechaduras, substituição dos vidros partidos ou das janelas danificadas, o que não era pouco.

Foi após o terceiro assalto e depois de se ter convencido que havia qualquer coisa de estranho com este suposto ladrão, que ela teve a ideia de deixar, à socapa, um pequeno bilhete facilmente detectável pelo individuo, na tentativa de evitar mais estragos e outros tantos prejuízos. Dizia apenas: “Sr. intruso, não vale a pena arrombar a porta nem partir os vidros. A chave fica por baixo do vaso grande, há comida no frigorífico e roupa lavada no quarto pequeno. Pode deixar a roupa suja na casa de banho. Voltamos no próximo fim de semana.”

O seu espanto foi total quando, no fim de semana seguinte, ao meterem a chave à porta, a fechadura não estava forçada, a cozinha tinha apenas discretos sinais de uso e a roupa suja estava dentro de um saco de plástico, no sítio combinado. Nada que pudesse despertar a atenção de um incauto.

E assim se foi passando o tempo, sempre com a mesma rotina que se foi entranhando quase sem ela dar por isso. Todas as semanas lá deixava a comida no frigorífico e a roupa lavada da semana anterior e recolhia o saco da roupa suja. Escusado será dizer que a casa nunca mais foi assaltada e tudo se passava numa harmonia perfeita apenas ameaçada pelo receio que a família desconfiasse da inusitada insistência em rumar todos os fins de semana para a casa de férias. Além disso, tudo tinha que ser feito com a maior discrição para não levantar suspeitas. Durante a semana, a preocupação relacionada com a preparação das roupas e da comida começou a preencher cada vez mais os seus dias até tomar completamente conta do seu espírito. A aproximação da sexta-feira provocava-lhe um indomável frenesim, até por se saber a infringir regras sociais básicas. Mas ela sentia um misto de ansiedade e felicidade, como se tivesse um filho para cuidar e a necessitar de toda a sua atenção, embora nunca o tivesse visto nem fizesse a mínima ideia do seu aspecto físico, facto que dava longas asas à sua imaginação. Que idade teria, seria alto ou baixo, magro ou gordo, loiro ou moreno? Teria família para sustentar? Estas interrogações assaltavam-na constantemente, mas, apesar de nada saber acerca dele, imaginava que alguma sensibilidade deveria ter, já que de vez em quando, lhe deixava uma pequena flor silvestre dentro do saco da roupa suja, que ela interpretava como sinal de reconhecimento e, sempre que possível, retribuía com algum miminho comestível.

Assim se passou mais de um ano, com a chave debaixo do vaso, roupa para lá e para cá, comida e cerveja no frigorífico, numa cumplicidade crescente. Em troca, a casa não podia estar mais bem guardada, embora o fim repentino dos assaltos tivesse provocado alguma estranheza no marido. “O ladrão viu que não havia cá nada de jeito para roubar e desistiu”, retorquia ela, com ar pretensamente despreocupado.

Foi naquela manhã, quando já ia a sair com as compras habituais do pequeno supermercado local, que ouviu a conversa entre uma das clientes e o rapaz da caixa: “Então, já sabe? Sempre apanharam o ladrão; já não era sem tempo. A polícia fisgou-o a escalar o muro da casa dos Tavares, ele ainda tentou fugir, mas acertaram-lhe com um tiro. Parece que morreu logo ali, o malandro. Diz que era um rapaz novo, bem vestido e bem cuidado. Agora, graças a deus, já vamos poder dormir descansados.” Pousou o saco das compras, começou a sentir um zumbido forte em toda a cabeça, um suor intenso invadiu-lhe o corpo e teve a sensação que ia desmaiar ali mesmo.  “A senhora está-se a sentir bem?”, perguntou o rapaz da caixa. Não conseguiu responder, apenas queria sair dali o mais depressa possível e apanhar ar fresco. Sentou-se no carro, ainda a tremer e ali ficou um tempo sem fim, de olhos fechados. Depois, em negação, tentou convencer-se que estava enganada, seria com certeza outra pessoa, não podia ser o seu ladrão. Naquele domingo, deixou tudo como de costume, confiante no destino, mas a sua cabeça não teve descanso até chegar a desejada e temida sexta-feira seguinte. Mal entrou, foi direita ao frigorífico. Ninguém tinha tocado na comida. Correu para a casa de banho, mas não havia roupa suja atrás da porta. Caiu nela, sentou-se no chão e chorou convulsivamente. O marido, aturdido não percebia o que se passava e perguntava atabalhoadamente, “Mas o que é que te aconteceu, caíste, magoaste-te? Diz qualquer coisa!” A voz não lhe saía, as lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo. Voltaram nesse mesmo dia para Lisboa. Durante o trajecto não conseguiu dizer palavra. A família toda reuniu-se de urgência, mas o seu mutismo persistiu durante as semanas seguintes. O corrupio de consultas e exames sem fim para onde se deixou arrastar, por falta de energia para resistir, foram totalmente inconclusivos. Deixou de comer e ameaçaram interná-la. Finalmente, um médico amigo diagnosticou uma depressão grave e provável início de demência. Ouviu e continuou calada. Quem a iria compreender?

Isabel Almasqué
Maio, 2024

Fotos de Manuel Rosário

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Escrito por

Isabel Almasqué, Médica oftalmologista. Ex-Chefe de Serviço de Oftalmologia do Hospital dos Capuchos. Ex-Secretária-geral da Sociedade Portuguesa de Oftalmologia. Co-autora de vários livros sobre azulejaria portuguesa.

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Últimos comentários
  • O génio da Isabel Almasquê anda à solta ! Brilhante !
    Obrigado Isabel

    • Zé Luis, não tenho resposta para este teu comentário, de tal modo me deixa surpreendida e ao mesmo tempo contente. Embora o sinta exagerado, vindo de ti, é certamente sincero e por isso um grande incentivo. Muito obrigada. Bjo grande.

  • Gostei.muito. obrigado

    • Muito obrigada, Manuela.

  • Belo conto!!!! Obrigado Isabel 😘

    • Obrigada, Rui. Grande abraço.

  • Escrevi no Face , mas acho que não aceitam…
    Bela escrita, bom português sem AO, suspense até ao fim….que prazer !
    Aguardo o próximo.
    Yvette Centeno

    • Querida Yvette, agradeço do fundo do coração e sei que os seus comentários são sinceros. Vamos ver se há próximo.. Bjs

  • Deliciosa história da minha amiga Almasqué que tem qualidade em tudo o que faz! Parabéns,

    • Querida Helena, muito obrigada pelo elogio mas também não precisa exagerar! Infelizmente, nem em tudo. Mas fico contente que tenha gostado do meu escrito. De vez em quando, dá-me para aqui. Bjo grande.

  • Eu já conhecia esta história contada pelo meu irmão
    Esta esta mais descritiva e da gosto lêr mas fim triste o fim do ladrão q julgo teria estado em Africa?
    Parabens as tuas historias me comovem porq parece q estou a vivelas
    Bjs e parabens novamente
    Fico a espera da próxima

    • Obrigada querida prima. Pois, sei que tb já conhecias a história, mas só agora me veio a inspiração para a escrever. Ainda bem que gostaste. Bjs

  • Muito bom : um conto que nos prende do princípio ao fim.
    Obrigada Isabel

    • Obrigada, Isabel. Bjs

  • Sou suspeito, mas …grande texto

    TóZé

    • Por vezes as alegações dos suspeitos são as que mais contam. É, sem dúvida, o caso. Obrigada e bjinhos.

  • Adorei.
    Quase chorei … também.
    ☺️

    • Obrigada, Rita. Bjs