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Ética e Medicina Interna

Na altura em que se comemoram 67 anos sobre a data da fundação da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, a 14 de Dezembro de 1951, ocorreu-me recuperar um texto que escrevi há 7 anos, por ocasião do 60º aniversário da mesma Sociedade, por achar que continua actual e que não seria agora capaz de o escrever melhor.

Quando me falam em ética, lembro-me sempre do slogan usado por Clinton, na campanha para Presidente dos EUA, It’s the economy, stupid!, e apetece-me dizer, É a ética estúpido!. Porquê? Porque começa a perceber-se que foi a falta de ética a causa principal das várias crises que agora se abateram sobre o mundo.
O Homem (já se sabia) não é, por natureza, um animal ético. O seu equipamento genético foi mais talhado para defender territórios, garantir a alimentação e proteger as crias, do que para organizar chás de caridade ou peditórios públicos. Mesmo com gravata e telemóvel, ao volante do seu jeep (sobretudo ao volante do seu jeep) continua agressivo, quezilento, conflituoso. E se, subitamente, sente que a sua vida ou a sobrevivência da sua espécie se encontram ameaçadas, pode transformar-se numa verdadeira fera.
Felizmente, o Homem é também um animal medroso. Depois de se ver obrigado a viver em sociedade, os seus instintos agressivos têm sido contidos por vários medos. A religião inventou o pecado, a culpa e o castigo eterno, este talvez o mais eficaz de todos os medos. A sociedade civil criou, como lhe competia, a polícia e os tribunais. A civilização burguesa introduziu uma figura assustadora, a perda do bom nome e da honra. Ir para o inferno, acabar na prisão ou ser enxovalhado na praça pública, são três medos que têm permitido desfrutar de uma relativa paz social nos curtos intervalos entre as pequenas e as “Grandes Guerras”.
O problema é que, nesta sociedade pós-moderna em que vivemos, estes medos estão a ser feitos em cacos. Numa cultura fortemente laicizada, já nem é seguro que o Papa acredite no inferno. A justiça, ferida de morte pela preocupação “garantística” e por uma ineficácia que brada aos céus, incomoda mais as vítimas do que os prevaricadores. E o circo mediático, onde figuras respeitáveis se dizem e desdizem sem qualquer vergonha, ajudou a desacreditar definitivamente valores como reputação e honestidade.
Perdido o medo, restava-nos a ética que é um produto de sociedades capazes já de uma reflexão profunda sobre cada um de nós na sua relação com o “outro”. Só ela nos poderia valer para construir um mundo mais justo e mais seguro mas, como se tem visto, também ela está a falhar.
Chegados a este ponto, é altura de perguntar: e o que se passa com a medicina? Os médicos, vinculados ao juramento de Hipócrates e habituados a conviver diariamente com a dor e o sofrimento, estão tradicionalmente ligados a uma imagem ética que decorre directamente da própria natureza da profissão. Serem capazes de colocar o doente em primeiro lugar, de se sacrificarem por ele, de estarem atentos às suas queixas, de guardarem sigilo do que ouvem e do que vêem, tudo isto (que já não é pouco) se espera deles.
Mas, entretanto, muitas coisas mudaram. O progresso das últimas décadas trouxe, como se sabe, novas tecnologias, mais eficácia e também perspectivas de grandes negócios. A cultura de uma sociedade consumista e pragmática, em que o tempo deixou de ser um percurso entre o passado e um futuro-cheio-de-utopias para se “espacializar” e se centrar no presente, tem feito o resto. “Fartar vilanagem”, parece ser o slogan que melhor se adapta aos dias de hoje. Os grupos financeiros procuram na medicina o terreno ideal para multiplicar capitais e rapar o fundo do tacho de um Estado completamente falido. Cada vez mais, são os gestores que ditam as regras do jogo e, obcecados com a tirania do número e o desejo de apresentar lucros, põem em causa diariamente alguns dos pilares em que a medicina outrora procurava legitimar-se: compaixão, prudência, qualidade técnica, aprendizagem permanente.
Para alguns médicos, as novas tecnologias trouxeram uma forma mais expedita de aumentar a conta bancária sem estarem sujeitos ao desgaste que implica envolverem-se na angústia e na ansiedade que acompanham as doenças. Por vezes, colocados perante a pressão que lhes é imposta pelos empregadores, os médicos estão menos disponíveis para ouvir as confidências e os desabafos que os doentes guardam para o momento sagrado da consulta. (Lembro-me de um colega que perante uma doente que não parava de falar, resolveu o problema com esta frase lapidar: Minha senhora, o seu tempo de antena terminou).
Estamos, em suma, numa fase em que a medicina, dominada por exigências administrativas, interesses financeiros e tecnologias, corre o risco de se tornar menos humana e, por isso, menos ética.
Que dizer então da Medicina Interna? Quando se comemora a data da fundação da sua Sociedade, o momento é mais de festejos e homenagens do que de críticas. Por essa razão, estou tentado a afirmar que a Medicina Interna não será a única mas é, com certeza, uma das principais reservas da ética médica. Não porque os internistas sejam pessoas diferentes, mas porque ao longo da sua carreira são formatados numa prática orientada para a valorização dos dados clínicos, para a utilização racional da tecnologias e para o recurso ponderado às terapêuticas. Eles sabem, melhor do que ninguém, que as tecnologias não podem substituir a informação colhida à cabeceira do doente, que as doenças iatrogénicas, provocadas por medicamentos inúteis, são uma praga e que a confiança no médico é o mais poderoso placebo que se conhece. Rigor no diagnóstico, contenção em gastos desnecessários e humanização, são comportamentos que estão presentes no seu ADN. Mas, não são estes, afinal, alguns dos componentes essenciais de uma verdadeira ética médica?

 

Barros Veloso, Especialista de Medicina Interna
Novembro, 2018

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Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

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Escrito por

Barros Veloso, Médico Internista. Ex-Director de Serviço do Hospital dos Capuchos. Ex-Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna. Co-Fundador da Sociedade Europeia de Medicina Interna. Presidente da Comissão de Ética para a Investigação Clínica (CEIC). Autor e co-autor de vários livros sobre azulejaria portuguesa, medicina e história do conhecimento científico. Músico de jazz.

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Últimos comentários
  • Quando lemos este excelente texto perguntamos, nós utentes da medicina, como é possível que tendo sido escrito há sete anos, esteja hoje tão actual e retrate tão bem uma parte significativa da nossa sociedade?!
    Dá que pensar…

  • É o mérito de quem cumpriu o que a Ética da vocação / profissão escolhida lhe impôs, e pela sua prática atenta (e quantas vezes mais do que isso, paciente e carinhosa) o guiou em todos os momentos.
    Barros Veloso tinha, além de sabedoria, um bater de swing no coração. E isso ajudava os seus doentes, e ainda hoje ajuda, e muito.

  • A comercializaçáo de toda a actividade médica, a venalidade e despersonificação inseridas no contacto médico-doente, leva inevitàvelmente à erosão da Ética.
    Fica a consciência do médico como unico garante do respeito pela mesma.. Simplesmente.