Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe, como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.
Miguel Torga, Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)
Comecemos então…
Era uma vez um Reino Maravilhoso, povoado por seres originais, talvez preservados na sua pureza por uma barreira de montes, onde acontecem coisas que só se percebem se ouvidas com o coração…
O irmão mais velho dizia-lhe:
– Bá Fernando, agora já é tarde para ti, vai para casa.
– A bêr se bou, respondia-lhe com as mãos na cintura, desafiando-o …
O Fernando Alves Pires, mais conhecido por Sebou, é uma figura mítica, tem uma força prodigiosa, alegre e amigo como não há, é adorado por todos. Quando telefono ao meu primo Arnaldo e pergunto:
– Então e o Sebou?
– É umas atrás das outras…, diz ele.
– Sebou, guias-me a mim e ao Branco para irmos ali matar uma perdiz?
– Claro que sim!
Mas no caminho lembro-me que não é dia de caça, o que significa multa pesada e digo-lhe:
– Oh Sebou, hoje não é sábado, não pode ser!
– Hã, hã, diz-me lá tu que mais faz à perdiz morrer à quinta ou ao sábado!?
Um dia, o Arnaldo comprou uma bananeira do Nepal para plantar em Boticas.
– Olha Sebou, vou plantá-la ali…
– Num bai dar!
– Oh Sebou, olha aqui as instruções “… pode-se plantar até 2000 metros de altitude, aguenta temperaturas até 10 graus negativos…”
– E eu digo-te que o clima de Boticas não lê instruções sobre bananeiras do Nepal !
O Arnaldo afasta-se e vai mesmo plantar a bananeira.
Diz-me o Sebou:
– …E se por milagre der, venho cá e parto-a toda, tu não achas?
– Acho que sim e digo-te mais: é um favor que fazes a Boticas e a Trás-os-Montes ao não permitires que uma espécie que não é de cá, venha para aqui chatear-nos, e isto não é racismo, Sebou…
– Pois não, vamos mas é lanchar ao Inácio que estamos aqui a perder tempo.
– Telefona ao Linhares e ao Pedro para virem também.
– Sim, mas vou começar por avisar o Inácio!
Aqui há uns 30 anos eu ainda não conhecia bem o Sebou e um dia, em que eu e o Arnaldo íamos de carro do Porto para Boticas, o Arnaldo ia-me dizendo que o Sebou gostava de ganhar sempre e de ter a última palavra e para me provar, que assim era, combinámos dizer ao Sebou que tínhamos levado uma hora e meia do Porto a Boticas, o que era impossível naquele tempo.
– A que horas biestéis?
– Às 10, demorámos uma hora e meia certinhas.
– Em que carro ?
– Num Mercedes.
– Bem, o carro é bom, o piso está seco…é possível, eu já fiz uma hora e um quarto!
– Oh Sebou, impossível. Impossível!, diz o Arnaldo. Além disso, quando é que foste a minha casa para fazeres exactamente o nosso trajecto?
– Uma hora e um quarto foi de placa a placa!!
O Sebou partiu um pé a jogar à bola e teve que o engessar durante 8 dias, mas como se aborreceu, ao terceiro dia partiu o gesso (ainda hoje tem o tornozelo deformado) e passou a guarda redes.
– Oh Sebou, tu és maluco! Então não te doía quando jogavas?
– Ai não que não doía, oh Jean Louis, tu fazes cada pergunta…
O Piouco é um electricista que gosta de lhe beber, às vezes.
Um dia, às 3.30 da manhã, bêbado, mete-se no carro para ir para casa, anda 30 metros e repara que mais à frente está uma brigada da GNR. Pára, sai do carro e ao ver que os GNR vêm em sua direcção sobe a um poste.
– O que está a fazer ?
– O meu ofício.
– Qual é?
– Electricista.
– Mas o que está aí a fazer ?
– A verificar a intensidade das lâmpadas.
– Às três e meia da manhã !?
– Não, binha cá ao meio dia!!
– Fui ao médico:
– E o que é que ele disse ?
– Cortou-me o tabaco…
– Mas tu não fumas…nem nunca fumaste …
– Não, habia de lhe dizer que bebia…
Quando eu era pequeno o Fanhonha era quem falava ao microfone, tanto no Jardim Público, como no estádio do Desportivo; dizia ele:
– E agora…uma informação desportiba: Nós um, os outros, outro!
Os grandes amigos de Boticas, na juventude do meu Pai, eram o Cílio da Granja, O Adão, o Esquerdo (por ser de Esquerda), o Albino (Loja Nova ) e o Matias. Lembro-me perfeitamente de todos e o que tinha mais graça era o Matias. Funcionário dos Correios, baixinho, gordinho, com o cabelo penteado todo para trás e com um ar muito vivo, andava sempre com o mesmo casaco castanho e com duas ou três cebolas nos bolsos. Um dia, perguntei-lhe porquê: “Oh rapaz, é que eu sou sempre convidado para patuscadas e às vezes não põem toda a cebola que eu quero de modo que ando sempre prevenido!”
O Matias tinha dois filhos, o Xico, que era um grande comilão e o Agenor que não comia nada, e assim a refeição era passada com o Pai a dizer: ” Pára Xico, come Agenor!”, coisa que ainda hoje lhes recomendamos sempre que estamos com um deles ( sim ,basta um, que a frase é a mesma).
Um dia de inverno estava a almoçar na Carreira da Lebre com o Arnaldo e o Sebou e vemos chegar da caça, numa carrinha de caixa aberta, uns de Boticas com o Xico, de camuflado e arma.
O Matias, o pai do Xico, tinha morrido, eu ainda não tinha estado com ele e diz-me o Sebou:
– Vai lá dar-lhe um abraço!
Eu fui e dei-lhe um abraço sem dizermos nada…e sai-se o Xico com esta:
– Cá estamos, entre os pinheiros e a neve…
Uma frase de uma beleza extraordinária, a meu ver, estávamos comovidos e o Xico começa a chorar…Olho para o restaurante e vejo o Sebou com a minha máquina fotográfica a rir-se como um maluco com o meu primo.
Entrámos e diz o Sebou ao Xico:
– Olha, estavas a pensar no teu Pai, não estavas?
– Sim.
– Já sabia, tirei-te uma foto a chorares a pensar nele, ele havia de gostar, não achas meu lambão, “Pára Xico come Agenor”!
O Matias ficou imortalizado nos nossos corações com a frase:
” Não é para me gabar, mas está um dia muito bonito! “
João Luís Videira
Julho, 2017