Nasci, mas ainda hoje não teria noção desse facto não fosse por tanto terem insistido comigo a celebrar um aninho, dois aninhos que agora são praticamente anões. Ah, isto foi antes do século passado ser um cinquentão.
Era um tempo de muitas artes, sendo a mais difícil aprender a convivência passiva com a ignorância, a injustiça e a fome.
Foi a escola primária com as carteiras a cheirar a madeira de sacristia e a tinta vertida de uma garrafa para tinteiros de porcelana a saltar do aparo de aço para os dedos, a escorrer pela palma da mão e às vezes a atrevidamente atingir o pulso.
E que dizer do bibe branco que limpava o suor da palmatória!?
A praia cheirava a manteiga de cacau, esse bronzeador sofisticado de manhãs escaldantes. As crianças mais pequenas usavam fatos de banho de malha tricotados pelas mães nas noites de inverno; os maiores – rapazes de cuecão largo, raparigas de sainha a embelezar disfarçando a anca.
Viajar na província tinha sabor a couve, a laranja, a pó de batata, a espirro de penas de ave. E o furor com que batia o motor a diesel da camioneta da carreira era invejável e se não nos levava pelos caminhos de Santiago fazia-nos percorrer a rota das gulodices, logo a seguir, famintos e cansados que chegávamos ao destino.
Portugal tinha polícia política mas cantava a liberdade; tinha um ditador mas também a catarse do Parque Mayer e no meio do caos organizado só se respeitava mesmo o polícia sinaleiro.
Luísa Folques
Novembro, 2013
Galeria de Imagens
Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário