Com o isolamento e muito antes da TV, numa cidade como Vila Real durante o século XIX a grande fonte de entretenimento eram as outras pessoas. Sujeitos excêntricos não faltavam e o culto do dichote e da alcunha com que mutuamente se presenteavam deixou histórias lendárias na memória colectiva. Esta tradição prolongou-se pelo século XX.
Havia o Pingo de Azeite, um sujeito muito magrinho e sorumbático, de cabelo abrilhantinado e que salvo erro trabalhava nas Finanças.
Na altura os jornais falavam no abominável homem das neves. A mulher dum senhor chamado Neves, que não devia muito à beleza, era a Abominável Mulher do Neves.
Uma família muito engraçada, pai, mãe e duas filhas no banco de trás do carro, que tinham por hábito passearem-se ao domingo depois da missa a uma velocidade incrivelmente lenta, muito dignos e aprontados, eram conhecidos como As Três Virgens- as duas filhas e a quarta velocidade do carro.
Uma senhora muito magrinha era a Delícia dos Cães. Vou-me poupar ao que me chamavam. Algum privilégio terei por escrever este artigo.
É quase inacreditável o número de histórias de que minha mãe se lembrava, envolvendo todos os personagens picarescos que diariamente se entrecruzavam na Bila (nome pelo qual Vila Real é tratado entre os iniciados em Transmontês, dado o hábito do linguajar local trocar os Vs pelos Bs).
Contava a história dum corredor italiano nos anos trinta, que durante os treinos para as corridas se perdeu numa bifurcação. Foi ter a uma aldeia, encontrou uma festa, aceitou o convite do regedor para as libações em curso, e voltou a Vila Real completamente bêbado ao fim do dia, para grande alívio das pessoas empenhadas na procura do presumível acidente.
E a história do Toninho do Talho, um simpático que ainda conheci na minha infância, e que se chamava António e tinha realmente um talho, tendo comprado um carrão, decidiu participar nas corridas sob o pseudónimo de Antonino del Taglio. Diz-se que sob o gáudio geral não passou da segunda volta.
Ou a orquestra dos Botelhos, célebre família musical dos princípios do século passado.
Se hoje em dia, ao falar com quem quer que seja da minha geração que tenha passado a infância lá cima, nomes como o Sá Surrão, a Bichoqueira, a Borrona, o Bertelo, as Marianas, o Chacatas ou o Zé de Abaças evocam reconhecimento imediato. Sendo todos nós de uma classe média mais ou menos favorecida, guardamos vitaliciamente na memória os nomes e alcunhas da gente mais pobre e andrajosa do burgo, sobreviventes de empregos temporários e biscates, animadores da rábula urbana que animava o torpor provinciano do resto do pessoal em férias, espapaçados em esplanadas sem nada que fazer.
Num livrito intitulado In Illo Temporae, um vilarealense do tempo dos meus bisavós, conta a história dum tal Zé Vieira em finais do século XIX:
Tendo o Zé Vieira regressado de Lisboa após dias sacudidos de comboio e diligência, todos os amigos e conhecidos acorreram a ouvir as novidades. Empolgado pela atenção colectiva o Zé Vieira resvalava para o exagero com frequência. Só um tal Silveira rosnava objecções de incredulidade, irritando o Zé Vieira. Quando o viajante contou que em Lisboa foi à corte e falou com El-Rei D. Luis, o Silveira explodiu sarcástico “Tu foste lá à corte!”. Ao que o Vieira retorquiu: “Fui e sua majestade até me disse: se vires o Silveira manda-lhe os meus cumprimentos”.
Após um silêncio, muito sério, diz o Silveira: “Então foste, Zé Vieira”.
PS: Não resisto a um aparte. Sem ter estado lá, a apreciação do passado é quase impossível. Era um mundo sem rádio, ou televisão. O tempo corria devagar. Caras novas na cidade eram fonte de excitação. Sobre as pessoas da camada social cultivada, vejam o filme “The Dead” do John Huston, baseado numa curta história de James Joyce.
É magnífico!
Pessoalmente não tenho saudades. Só tenho uma certa fome de tempo.
Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário
João AReias | 2020-08-19
|
Pois é amigo e ex-colega de liceu….ou antes… de turma. Sou o João Areias de que certamente te recordarás. Li este teu artigo e fizeste-me recordar aquelas figuras da “bila” que a nossa geração conheceu. Um abraço forte