Dois acontecimentos, passados nas últimas semanas, ocuparam as atenções da totalidade dos meios de comunicação e mantiveram o mundo inteiro em suspenso: o grupo de crianças tailandesas presas numa gruta e o campeonato do mundo de futebol.
Por cá, as várias cadeias de televisão mantiveram as pessoas presas aos ecrãs dando, em permanência e alternadamente, notícias sobre a complexidade do resgate das crianças e as dúvidas quanto ao seu sucesso e sobre as incógnitas do vencedor do mundial de futebol.
Agora que a poeira parecia ter assentado, depois das crianças terem sido todas resgatadas com vida e a equipa da França se ter sagrado campeã do mundo, eis que os holofotes se viraram já para a cimeira de Trump com Putin e, last but not least, para a transferência de Cristiano Ronaldo para a Juventus.
Será que no meio deste turbilhão imparável de acontecimentos, não vale a pena parar um pouco para pensar?
Primeiro: quem é que decide da importância relativa de cada notícia? A vida de seres humanos vale tanto como um campeonato de futebol? Exerce a mesma inquietação na população em geral? Ou são os media que, na guerra implacável das audiências, modelam e valorizam os vários acontecimentos com os condimentos necessários para manter o público em suspense permanente? Paradoxalmente, na Tailândia, em pleno olho do furação, os media foram mantidos à distância, de maneira a não interferirem nem perturbarem as operações em curso e as imagens colhidas só foram divulgadas a posteriori.
Segundo: como se justifica a energia gasta, a mobilização de meios, a colaboração e a interajuda internacionais para salvar 13 vidas humanas, e a simultânea indiferença em relação ao destino de milhares de refugiados perdidos no mar, de milhões de vítimas dos bombardeamentos na Síria ou nos vários genocídios por esse mundo fora? Esta diferença de atitude só se explica porque uns têm um nome, uma cara, uma história ou qualquer outra coisa de concreto que lhes confere uma identidade própria e os torna mais próximos de nós; os outros são apenas seres anónimos e abstractos. Ter uma identidade faz toda a diferença. Basta lembrar Aylan, a criança síria encontrada morta numa praia, cuja fotografia correu mundo. É assim a solidariedade humana.
Terceiro: várias características socioculturais das sociedades asiáticas ficaram bem patentes durante este episódio na Tailândia, algumas das quais, contribuíram certamente para o êxito do seu desfecho. Foi evidente não só a capacidade de organização e de tomada de decisões nos timings certos pela parte dos responsáveis operacionais, como a sua preocupação em mostrar domínio dos acontecimentos, transmitir informações concretas e incutir confiança em todos os envolvidos.
Da mesma maneira, só um grande poder mental de disciplina e autocontrole e uma fortíssima ligação entre o treinador e as 12 crianças, os poderia ter mantido vivos durante 9 dias, às escuras, sem mantimentos e sem contactos com o exterior. Quando foram encontrados, todos estavam aparentemente calmos e em meditação. Tinham partilhado a pouca comida existente, bebido a água que corria das estalactites e mantinham-se imóveis para poupar energia. Tudo, sob a orientação do treinador, antigo monge budista.
Por outro lado, a atitude dos familiares ou amigos que foram entrevistados durante as operações de resgate foi sempre de contenção emocional, de esperança e de confiança no treinador. Não houve carpideiras de serviço, nem gritarias, nem tentativas de culpabilização de ninguém. No nosso país, ouvi várias pessoas entrevistadas que, em tom exaltado, pediam a cabeça do treinador, atribuindo-lhe a responsabilidade principal dos acontecimentos. Uns queriam que fosse logo julgado e preso e outros propunham mesmo que o deixassem na gruta, para expiar a sua culpa. É o peso da nossa tradição cultural judaico-cristã baseada na culpa e na penitência, a vir ao de cima. Uns têm uma atitude de compreensão e confiança, outros de culpabilização e castigo.
Se a equipa de futebol das crianças tailandesas tivesse jogado contra nós, o resultado seria muito provavelmente Tailândia 13 – Portugal 0.
Isabel Almasqué
Julho, 2018
Fotografia de Manuel Rosário
Jose Vaz Carneiro | 2018-07-25
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A Isabel tem o dom de transmitir ideias complexas em português essencial, fluido, despido de floreados, de leitura fácil. Faz-me lembrar o Eça de Queiroz.. Obrigado Isabel
Zé Luis
Isabel almasqué | 2018-07-26
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Zé Luis, sempre foste um homem cheio de sentido de humor, mas convém não abusar… De qualquer maneira, muito obrigada pelo teu comentário.
Alicia | 2018-07-25
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Isabel que analisis tao certo de uma situacao que cativo o mundo.
Temos muito que aprender de este episodio.
Creio o nosso estado de espirito vem de muito atras e vai ser com certeza muito dificil de cambiar.
Lets hope with time ee do!
Muchas graciss amiga !Deves escribir mais!!!!
Isabel almasqué | 2018-07-26
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Pois, é a história da espécie humana. Vamos ver no que dá.
Santiago Almasqué | 2018-08-08
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Bravo, mana.
Será que a Tailândia poderá dispensar alguns bombeiros ?
Sobretudo, chefes, coordenadores, etc
Que os outros só podem fazer o que os deixam, quando os deixam.
Bem labutou o nosso Avô.
Beijocas
Isabel | 2018-08-08
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Pois foi, mas neste país parece que não se aprende nada; nem com a experiência de quem mais sabe nem com os erros do passado. Quando assim é, as coisas nunca acabam bem. Está à vista. Bjos.
António Maria Coelho de Carvalho | 2019-03-19
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Só hoje, muitos meses depois li, e fiquei todo babado… Tinha, na altura, pensado e sentido precisamente o mesmo e não pude agora evitar ficar também lisonjeado …
isabel almasqué | 2019-06-25
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Também só hoje é que li o seu comentário que aproveito para agradecer. Ainda hoje, quando penso nisso, fico espantada com a capacidade de resiliência destes rapazes e com a lição que deram ao mundo. Tiro-lhes o chapéu.