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O deficit orçamental (nos EUA)

Há muitos anos, quando o Sr Fulano emprestava dez mil reais ao Sr Sicrano, exigia uma taxa de juro de dez por cento, com os dez mil reais pagáveis ao fim de dez anos. Os juros eram elevados, dados os riscos de não pagamento, porque entretanto o Sr Sicrano podia abrir falência. O Sr Fulano recebia um papelinho em seu nome, estipulando as condições do empréstimo e assinado pelo Sr Sicrano. Metia o papel numa gaveta e conformava-se com o facto de, se entretanto precisasse do dinheiro para o que quer que fosse, tinha-o empatado por dez anos. Um empréstimo sem liquidez, não negociável (não era pagável ao portador), e de alto risco. Os 10.000 reais são o Principal do empréstimo. Os Cupões definem os juros anuais a pagar.

Quando hoje em dia compramos um Titulo do Tesouro (a Government Bond), guardamos na gaveta um papel bordejado a arabescos, completamente negociável (ao portador), sem risco (o governo paga sempre) e completamente líquido (leva uns segundos a vender, e se as taxas de juro entretanto tiverem descido, ainda fazemos um lucrozito). É quase-dinheiro. É a moeda corrente do universo financeiro. Alavancado alimenta todas as trocas financeiras, derivativos, etc. E o investidor individual poderá sempre redimir o título a seu termo, ou a meio termo se precisar do dinheiro para comprar um carro.
A “dívida” do governo é de 17 triliões de dolares. O que é o mesmo que dizer a riqueza do Sector Não-Governamental é de 17 triliões de dolares. E ao contrário do Sr Sicrano, a “dívida” governamental NUNCA será paga.

A coisa funciona assim:
O Sector Não-Governamental, abreviando SNG (investidores individuais, bancos, fundos de pensões,hedge funds,etc) compra 100 milhões de dólares da “dívida” do governo. O governo dá-lhes de volta Titulos do Tesouro, com que eles alavancam empréstimos, compram outros bens financeiros,etc. Estes títulos são pura riqueza, quase-dinheiro, ao contrário do inútil papelinho que o Sr Sicrano deu ao Sr Fulano no exemplo anterior.
Mas o melhor está para vir. Quando o governo gasta o dinheiro na comunidade, os trabalhadores amortizam os empréstimos das casas e carros que entretanto compraram, as empresas pagam os encargos financeiros das dívidas que entretanto contraíram. De maneira que os 100 milhões iniciais voltam de novo para a posse do SNG. Agora o SNG possui de volta os 100 milhões de dólares MAIS 100 milhões de dólares em Títulos do Tesouro. As despesas do governo levam à criação de dinheiro, e a noção de o governo ter que pagar a “divida”( senão os nossos netinhos terão que o fazer) é absolutamente fictícia. E essas quantias colossais fazem as bolsa de valores subir constantemente, dissociadas da economia real.

Quando os EUA importam 100 milhões de dólares de mercadorias chinesas, depositam o dinheiro numa conta que o banco central chinês tem no banco central americano(no FED). Negócio fechado. Ninguém deve nada a ninguém. Com esse dinheiro os chineses podem fazer três coisas:

Deixar o dinheiro a hibernar sem ser usado
Comprar e importar bens e serviços americanos ou
Comprar títulos do tesouro do governo (sempre recebem algum juro).

Os chineses escolhem a última solução. Não estão a “emprestar” dinheiro ao governo. Transformam apenas dinheiro em quase-dinheiro. E na folha de balanços do FED a conta chinesa diminui e os balanços da conta do tesouro no FED aumentam. Simples registos electrónicos. Se quiserem de volta o dinheiro, deixam os títulos caducar, e de novo o FED debita a conta do tesouro e credita a conta dos chineses usando entradas electrónicas. É como quando num banco comercial um cliente põe parte do dinheiro duma conta à ordem, e outra numa conta a prazo. Não há criação ou destruição de dinheiro, não há dívidas residuais. Ninguém deve nada a ninguém.

O que significa a “Dívida” do governo ? Apenas um registo da riqueza nas mãos do SNG, que cresce progressivamente com o movimento circular do dinheiro e com os juros acumulados inerentes ao sistema. E sem este mecanismo de reciclagem de fundos, a procura global agregada colapsaria, não haveria um governo pronto a comprar bens e serviços da economia, o consumo diminuiria, desemprego, depressão.

E cá fora as firmas e empresas endividam-se entusiasticamente, abraçando também a girândola do deficit orçamental (desta vez delas próprias, o governo não tem aqui nada a dizer). Mas isto ficará para um próximo artigo.

José Luís Vaz Carneiro
Tucson, Maio 2017

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Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário e

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Escrito por

Curso em Medicina FML 1975.  Clínica Geral em África, 3 anos. Residência em Medicina EUA, Mount Sinai School of Medicine, Board certified. Hospitalista por 20 anos em hospitais dos EUA, reformado. Professor Agregado de Medicina, ano lectivo 1998 Yale University. Curso de Finanças e Banca Prof Perry Mehrling. Hobbies~Guitarra Clássica, Economia, História, Arte, etc

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Últimos Comentários
  • Zé Luis, gostei da tua explicação. Gostaria muito de ver isto em diagrama colorido..a minha ignorância é de tal ordem que me perco entro o sicrano e o fulano.
    Para lá do mundo objectivo e subjectivo, nós sapiens…, há muito vivemos no imaginativo, que sem “balizas” não chega a ser sistema, apenas um caos perigoso.
    Como balizar este sistema financeiro?