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Caminhar, largar e encontrar

Reflexões no percurso pedestre da Atalaia

Por terras de Atalaia, o caminho desenha-se entre trilhos que se entrelaçam com o Tejo, quase como se jogassem às escondidas com o rio.

São trilhos que guardam histórias de fronteiras, talhados nos tempos em que os moleiros contavam com a força das ribeiras para moer os cereais. As estradas que ligavam as azenhas às aldeias nasceram dos passos contínuos dessas gentes, um traço que o tempo quase apagou mas que nós, caminhantes da natureza, teimamos em recordar sempre que fazemos um percurso.

As azenhas também ainda lá estão, num silêncio que parece pertencer-lhes naturalmente, a viver o seu período de merecido descanso. As ribeiras, essas, continuam a correr irrequietas até ao Tejo, com a mesma força e determinação que antes alimentava os moinhos. Dos moleiros, restam as marcas dos seus passos, transformada em caminhos de pé posto, gravados na terra e no tempo.

Hoje, não caminho sozinha. Há algum tempo que não caminhava acompanhada e quase me tinha esquecido do prazer que é ter companhia. Pousei a consulta de mapas e apps, descansei a atenção obsessiva na direção a tomar, com medo de me perder, permiti-me largar o controlo e deixei-me ser conduzida. Este largar não só físico mas também mental é um espelho do percurso interno que tenho trilhado ao longo do último ano. Um ano que me desafiou a largar, a soltar, a deixar ir. Um ano que me fez aceitar, com mais profundidade e compromisso, o conceito de viver com vagar.

Sempre que abraço esta forma de viver, algo se muda. O corpo relaxa, a mente descontrai e a confiança no que o caminho (seja ele literal ou metafórico) me oferece cresce. Aprendo a caminhar sem expectativas, acolhendo cada momento com entusiasmo. Deixo de me concentrar no destino e começo a saborear os passos que dou, um a um. Sem consultar o mapa ou a abrir a aplicação no telemóvel a cada instante, entrego-me à certeza de que o caminho e o que nele encontro, me guiam com segurança. E a verdade é que os percursos pedestres que encontramos nas páginas dos municípios ou dos parques naturais, de uma maneira geral, estão bem assinalados no terreno.

Tal como o último ano me ensinou, esta caminhada por terras de Atalaia reforça uma verdade essencial: largar não é sinónimo de perder. Deixar ir o controlo não significa perder-me. Muitas vezes, revela possibilidades que antes estavam ocultas, invisíveis sob o peso de uma linha reta, de um foco inflexível em seguir sempre em frente. Antes, com os olhos colados ao mapa, escapavam-me muitos detalhes do que estava ali, ao meu redor, disponível para ser apreciado em cada passo.

Agora, nas caminhadas no campo e na caminhada da vida, concedo-me cada vez mais momentos para olhar a 360º. Em todas as direções, acolhendo cada detalhe que o horizonte me oferece. Entendo que largar o controlo é, na verdade, um ato de confiança – em mim, no caminho, em quem ca minha ao meu lado. E igualmente importante, é um ato de apreciação pela única coisa que realmente tenho comigo a cada passo: o momento presente.

Sílvia Romão
Setembro, 2024

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Escrito por

Empreendedora apaixonada pelo turismo sustentável e pela arte de contar histórias. Com uma licenciatura em Marketing e uma pós-graduação em Turismo de Aventura, dedica-se a criar conteúdos que capturam a essência de destinos únicos e experiências autênticas.

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Últimos comentários
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    obrigada pela partilha de transformação dum espaço de controle para uma paisagem alargada de possibilidades…

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    Belo texto. É bem verdade, o destino é quase sempre inimigo do trajecto. Com a ânsia de chegar, concentramo-nos demais no ponto de chegada e deixamos escapar a beleza do percurso. Fruto dos tempos…