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A chegada dos extra-terrestres

A chegada dos extra-terrestres e o poder de negação do medo

Como escrever no De Outra Maneira, nesta outra maneira em que vivemos? Que sentimentos nos assaltam neste pós fastfood,? De pacificação ou de temor? Que desafios se nos colocam? Que medos nos assaltam? Estará o mundo zangado com todos nós ? Não sei ainda os resultados desta prova de esforço de recolhimento. Sei sim que consigo pensar mais e com mais ar no espírito. E mais ozono também! Que vamos desejar ou esperar ou tentar prevenir, com os neurónios bem atentos, depois deste acidente inesperado?
Ao reler o admirável mundo novo no retiro forçado da pandemia, deparei-me com uma carta de Aldous Huxley a George Orwell para lhe agradecer a oferta do exemplar do livro 1984 e fazer um breve comentário ao mesmo, dizendo a dada altura que o pesadelo de 1984 estava destinado a converter-se gradualmente no pesadelo de um mundo, com mais afinidades com o seu Admirável Mundo Novo. Segundo ele “a mudança desse mundo ficaria a dever-se à manifesta necessidade de maior eficácia que a vida exigia”.
E na verdade a evolução tecnológica imparável, a vida acelerada de fast food, é talvez a expressão dessa dita procura de eficácia. Para Aldous Huxley essa evolução era um facto real, “excepto se uma guerra atómica ou biológica em grande escala surgisse. Que pesadelos inimagináveis surgiriam então? ”
Na literatura podemos sondar o futuro e aprender a pensar com ela. Cá temos hoje a nossa pequena nova guerra biológica, contra um inimigo pequenino, com uma simples camadinha proteica a protegê-lo, inteligente e voraz e as inimagináveis perdas físicas, e os descontrolos éticos e morais a elas associados.
E esta reclusão fez-me reflectir sobre o futuro desconhecido e da sua relação com os medos. Do medo do controlo considerado como normal exercido por drones que nos vigiam, por uma (boa causa neste momento), mas podendo no futuro vir a institucionalizar-se para controlar “desmandos” e do enorme medo de perder a liberdade.

Nos anos 30 as pessoas conheceram o medo em relação ao futuro, uma década após o final da primeira grande guerra, com a queda da Bolsa e as transformações sociais psicológicas e económicas de dez anos de crise económica. Uma década a seguir surge um novo medo durante a segunda guerra mundial de um futuro, atormentado por eleitos, altos, louros e sem doenças ou desvios do comportamento dito “normal”e as pessoas tomaram de novo consciência de que o passado se tornara subitamente presente. Em Portugal o medo viveu nas nossas casas durante muitos anos. Depois da abundância dos pós guerra, dos serviços sociais e sanitários expressivos de grandes conquistas civilizacionais, surge um novo paradigma de sociedade global ambicioso, de lucros e de afectação dos recursos naturais, consumindo desmedidamente um planeta que começou a derreter. E a nova crise do capitalismo associou-se naturalmente ao já experimentado medo do futuro. Migrações, guerras localizadas, desconfiança e mais alterações climáticas, desastres ecológicos e humanos.
Neste processo de medo do futuro explode um novo medo e uma ilação encarada aparentemente como um lugar comum, mas a tornar-se corpórea e real: A vida tem princípio, meio e fim. E a moralidade tem raízes na causalidade.
E neste medo exibido pelos jornalistas com olhos feitos de máquinas fotográficas, para fixarem com frenesim o momento do crime, que o vírus promove no momento actual, a ser registado em telejornais e revistas, e que ocupa hoje com a pandemia do Covid 19 o nosso espírito.
Os números dos mortos ditados diariamente apagam a ideia de que alguém único e irrepetível, com nome, com ideias, com inteligência, com brilho no olhar, capaz de amar e ser solidário, com uma vida enfim, se foi. O número despersonaliza e mete medo e por isso mesmo ninguém quer ser um número.
E é do medo da constatação corpórea desse lugar-comum que se está a falar hoje no ano de 2020, mas igualmente no de ontem de 1930, ou de 1939-45, ou de tantos outros momentos, da ascensão e queda da vida humana.
A ideia de poder haver uma ligação entre o presente e o passado parece de certo modo demodé, quando o momento presente é o tema que se trata com gosto, nos espectáculos televisivos. Mas este teatro que vivemos hoje não é falho de respostas, desde que se respeite o conhecimento da simples ideia de continuidade entre o passado e o presente. E a dita relação passado presente passa de novo a servir de reflexão ao medo que ressurge. Medo que poderá ser o rastilho para a falta de resposta imediata para a guerra que se combate contra um vírus, sinistro traiçoeiro, e estrambólico, que por ser desconhecido, nos assusta a todos.
O poder da negação do medo é a arma terapêutica a prescrever, quando não há vacinas, nem medicamento conhecido testado, nem guidelines capazes de o combater activamente e com eficácia. Porque o medo também mata.

Nestes tempos em que somos confrontados com o confinamento sente-se a vontade de reencontrar o que antes nos dava prazer sem medo. Beber um vinho bom e ouvir um poema com amigos, ir a um cinema ou a um teatro, ou simplesmente dançar com música alta em casa, sem pressas e com um copo de vinho de boa cepa, que amigos que o produzem nos dão a provar, ou estar simplesmente num jardim a pensar, ou a comer um pãozinho saloio feito num forno de lenho. Que bom que é reconhecer as coisas boas! Por isso temos de lhes dar continuidade, mas também ouvir com outros olhos os olhos dos outros e detectar com antenas o insuportável
Combater o medo é a palavra de ordem para combater os extraterrestres microscópicos que se aproveitam da voracidade dos homens para se instalarem nas nossas vidas e provocarem pandemias. Não são uns seres verdes nem pegajosos, nem têm antenas, como nos filmes e nas histórias de ficção, nem são bonzinhos e amigos das crianças como no ET, de Steven Spielberg, mas sim umas pequenas partículas microscópicas que se replicam raivosamente sempre que o equilíbrio é alterado. Penso que se calhar os tais os extra – terrestres vieram até cá para nos fazer repensar a vida e o modo com nos tratamos uns aos outros e de como protegemos os vulneráveis, A partir de agora teremos de combater o medo que espreita e prevenir mais desmandos que a nova organização do mundo possa procurar estabelecer. É o futuro sem medo que temos de preservar, não como uma questão de bem ou de mal, conceitos sem um grande sentido ético, mas numa perspectiva antropológica de evolução e de cultura. É saber preservar a dignidade de Ser humano, pela inteligência
A chegada dos extraterrestres, serviu para nos avisar dos riscos da ignorância, como forma de poder e que os novos princípios serão sempre uma possibilidade de reapreciar a beleza da vida e de recuperar alguma dignidade.

Leonor Duarte de Almeida
Abril, 2020

Fotos de Manuel Rosário

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Escrito por

Maria Leonor Duarte de Almeida é oftalmologista em Lisboa - cidade onde nasceu. Mestre e Doutorada em Bioética leccionou na Faculdade de Medicina de Lisboa como Professora Auxiliar em Oftalmologia. A escrita tem tido uma presença na sua vida, mas somente em 2002 se expôs como escritora. Publicou cinco livros de ficção, um livro de ensaio sobre Autonomia em Bioética, em 2008, e viu o seu trabalho reconhecido pela crítica, recebendo o Prémio Revelação da SOPEAM, sendo ainda distinguida como premiada em Novos Autores Portugueses, pelo do IPLB em 2002. É membro da Associação Portuguesa de Escritores.

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