De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Sou “educada”?

E quem me deu essa educação?

Gosto de pensar que ter sido “educada” é o que me permite, agora, cuidar dos meus doentes com generosidade e compaixão, estar aberta às suas questões, ter habilidade para traduzir a ciência médica em prática clínica, navegar num mundo que é de todos e onde saber ouvir o outro é uma enorme vantagem. Para isso, uso camadas sucessivas de aprendizagem que foram organizando no meu cérebro as capacidades de observação, diálogo, integração de informação, exploração de fronteiras de conhecimento, planeamento, raciocínio e a compreensão de que todas estas funções têm que se articular com programas cerebrais biológicos, automatizados para a sobrevivência da espécie.
Na minha geração esta “programação” era dirigida a elites e feita simultaneamente pela transmissão dos valores pela família, pela sociedade em que se nascia em conjunto com a escola.
Quando cheguei ao fim do Liceu lembro-me que vacilava entre ser médica, veterinária ou arquitecta. Foi fácil escolher visto que no princípio dos anos 70, em Portugal, a Faculdade de Medicina me parecia a instituição mais estável.
Atravessar a revolução de Abril na Universidade foi uma experiência humana extraordinária já que a rotura com os valores tradicionais coincidiu com os meus tenros dezassete anos, época em que o nosso cérebro está sob quase total comando das nossas emoções.
No entanto, a factura dos anos de revolução mostrou-se mais tarde. Um dia, jovem médica na Lourinhã, sem apoio de alguém mais diferenciado, telefonei dum largo e vazio corredor do Hospital para uma amiga e colega mais experiente. Na mão, um quilométrico electrocardiograma que eu tentava, em vão, descrever pelo telefone à minha amiga. Decidi aí que tinha que reaprender as bases, que me tinha escapado algo, e por sorte, juntei-me a uns amigos médicos que estavam a estudar novamente a matéria toda do curso de medicina para fazer um exame que nos permitiria trabalhar nos EUA.
Tive imensa sorte porque estes anos nos EUA aceleraram não só a minha integração no então nascente mundo da tecnologia nas nossas vidas diárias, mas também num modelo de sociedade mais sistematizado e cosmopolita onde fiz para sempre amigos de todas as nacionalidades.

sou educada
sou educada

Acabei o curso de Medicina com 21 anos. No início da minha carreira apoiava a minha falta de experiência nos manuais médicos, aos poucos incorporei e automatizei as rotinas e só após anos de experiência consegui criar o humanismo essencial à compreensão da importância da interacção de cada indivíduo na doença, da variabilidade da biologia, da sorte e dos azares da vida.
Mas passados 50 anos da minha entrada para escola o que mudou nas famílias, na sociedade, na tecnologia?
Imenso…
Na maioria das famílias o pai e a mãe trabalham, o tempo que lhes resta para a transmissão dos valores é cada vez menor e muitas vezes esses valores familiares entram em competição feroz com o que se transmite pela TV, cinema e pela própria sociedade em mutação.
Na escola o ambiente mudou completamente. São espaços sociais menos homogéneos onde também ali a criança é exposta a realidades e valores muito diversos.
Na sociedade, embora continue a haver elites, já não são só as elites que necessitam de educação para ganhar a vida. Todos precisamos de educação para encontrarmos um lugar digno nesta sociedade de conhecimento.
A tecnologia, essa deu um salto colossal e transformou as nossas vidas privadas, profissionais, sociais e também políticas.
Como lembra Roger Schank, o ainda aceite conceito de “mente educada” traduzindo o conhecimento de literatura e poesia, a apreciação da história e dos assuntos sociais, a capacidade de lidar com problemas económicos, de domínio de várias línguas, de entender princípios científicos e as bases da matemática já era o que, em 1892, o Presidente de Harvard definia como parte do curriculum de quem quisesse entrar na Universidade. Mas assim como a expressão dos genes depende do seu contexto, também a educação não vive isolada da sociedade. E se tudo mudou, como conseguimos saber o significado actual de “mente educada”?
É bom lembrar que não é só em Portugal que a educação se sente em crise. Joel Klein, o procurador da República que pôs em tribunal a Microsoft, escreve um artigo esclarecedor da sua experiência de oito anos como chansellor of New York School System na revista The Atlantic de Junho de 2011. Embora algumas das reformas dos últimos anos tenham melhorado significativamente a educação no estado de Nova Iorque, Joel Klein explica como todo o sistema está virado para os adultos (professores, políticos, financeiros e sindicatos) e não para as crianças.
Ora, a educação destina-se às crianças, do modo como proporcionarmos a sua integração no mundo actual, altamente tecnológico, móvel, mutável e altamente competitivo devido à extraordinária explosão demográfica dos últimos anos. No mundo de hoje a natureza da competição está contextualizada numa sociedade diferente onde o ser humano compete fora do seu grupo sócio – cultural de origem e fora de formações profissionais estanques.

sou educada
sou educada

Susan Greenfield no seu livro “The private life of the Brain”, lembra que no cérebro humano a parte mais antiga, o tronco cerebral, funciona como uma espécie de mola em tensão, pronta a disparar por motivos de sobrevivência. Este tronco cerebral está como que envolvido pelo sistema límbico, sistema intimamente ligado às emoções, que por sua vez está envolvido pelo córtex cerebral, a parte do nosso cérebro relacionada com a lógica e a capacidade de racionalizar. Estas estruturas estão fortemente interligadas e controlam-se mutuamente.
Também na educação imagino um core central básico comum a toda a aprendizagem onde as bases da matemática, a leitura e a escrita funcionam como aquela mola central cheia de energia que nos ajuda a expandir para outras áreas. Ao mesmo tempo, o cérebro, em interacção com o meio ambiente através de actividades menos racionais como a dança, a música, a pintura, o relaxamento entre outras, vai criando fortes ligações entre a aprendizagem básica e a expressão das nossas emoções. Por fim, à medida que as conexões entre os neurónios vão aumentando e que a nossa capacidade de abstracção aumenta, ganhamos finalmente o nível mais alto de educação onde o core básico fortemente interligado às nossas capacidades expressivas assume uma dimensão abstracta capaz de inovar para lá do conhecido.

Queria lembrar que somos nós, os adultos, que decidimos as condições em que as crianças estudam, e somos nós, pela mesma razão, que nos devemos interrogar acerca do que queremos das novas gerações, pois são estas crianças que um dia vão ser os nossos advogados perante a justiça, os médicos que cuidarão de nós, os engenheiros e arquitectos dos nossos sonhos, os artesãos das nossas tradições.
David Chadwell esteve recentemente em Portugal a falar da sua ideia de escolas diferenciadas, i.e. rapazes para um lado e raparigas para outro. Quando era uma jovem rapariga provavelmente não entenderia os argumentos deste professor dedicado, astuto e criativo. As suas sugestões fazem muito sentido para alguns casos e como diz David Chadwell os professores devem olhar para os seus alunos, para os resultados, para o comportamento e para a vontade dos pais e então decidir o que é melhor para a criança. Chadwell não tem certezas mas sugere que está na hora de experimentar ideias diferentes, controlando resultados para encontrarmos melhores soluções para um problema que nos toca a todos.
Assim como na saúde dizemos que nos encontramos numa fase de “discordância evolutiva” onde a natureza lenta do processo evolutivo não conseguiu acompanhar as mudanças do ambiente causando stress e doença no indivíduo e na sociedade, também na educação as mudanças sociais, tecnológicas e científicas exigem que todos colaboremos para encontrar caminhos para que a escola seja um lugar onde as crianças estruturem âncoras educacionais que lhes permitam tornarem-se adultos integrados numa sociedade que eles próprios ajudem a construir.
Um gene sozinho não é nada.
“99 não é 100”…
e cada um de nós faz a diferença…

Minnie Freudenthal
Setembro, 2011

sou educada
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Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário

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Escrito por

Alice Minnie Freudenthal, médica Internista pelo American Board of Internal Medicine e Ordem dos Médicos Portuguesa. Áreas de interesse; neurociência, nutrição, hábitos e treino da mente. Curso de Hipnose clínica pela London School of Clinical Hypnosis. Curso de Mindfulness Based Stress Reduction. Palestras e Workshops de diferentes temas na área da neurociência para instituições académicas, empresas e grupos.

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