Tristão e Isolda: da lenda celta ao mito wagneriano
Comecemos por uma citação de Denis de Rougemont a propósito de Tristão e Isolda: ce qu’ils aiment, c’est l’amour, c’est le fait même d’aimer (L’amour et l’occident, Plon, 1972).
A ideia, aparentemente simples, de não se amarem um ao outro, estes dois amantes que se tornaram emblemáticos de uma entrega de amor total, remete-nos para uma Idade-Média em que a vivência do amor cortês nos é descrita como experiência mística simultaneamente feita de paixão e negação, e em que a química do corpo é substituída pela química da alma, puramente espiritual.
Os textos primitivos da lenda de Tristão remontam aos séculos XII-XIII e neles não é tanto o enredo, a narrativa romanesca, que adquire dimensão universal, mas antes o arquétipo em que se suportam e fazem da narrativa um tema exemplar do género, de concepção simbólica e mítica, atravessando os tempos.
Afinal o que é um mito, e como se estrutura para que ressurja, de modo tão regular e tão diverso, desde a Idade-Média cavalheiresca até ao neo-romantismo de um Wagner, ou mesmo ao distopismo moderno na obra de um Robert Musil, com o par Ulrich-Agathe ? Pressentimos, de modo subtil, um arquétipo ainda mais antigo, o do mito do Andrógino, de Platão, no seu Banquete. Não será tanto o caso nos conceitos medievais, mas será muito mais nítido nas obras de Wagner, atravessadas por reflexos neo-platónicos, em que a Gnose mística, contrariando a pulsão do desejo do corpo, introduz o sacrifício para elevação da alma. Teremos de distinguir, no historial do mito, o mundo material do Corpo, o do Espírito, que é, nas palavras de um Rougemont, o do Verbo, e finalmente o da Alma, centro das emoções, e neste caso das emoções amorosas, na relação com o outro.
Para Gilbert Durand, na sua doutrina da Mito-Crítica, um mito é uma narrativa fundadora. Indicia uma mudança no comportamento civilizacional, ou cultural. O mito de Prometeu, da descoberta do Fogo, não representa o mesmo que o mito do Amor em Tristão e Isolda.
Com o mito de Tristão a mudança é cultural e espiritual (ou espiritualizante) na apreensão de um sentimento que se desprende do “outro”, do corpo do outro, e da matéria espessa, como diriam místicos e alquimistas, e se eleva sublimando-se (pela morte, se necessário) à esfera da pura espiritualidade que divinizará um sentimento afinal bem humano. Surge assim, pelo mito do Amor, entre o Corpo e o Espírito “uma terceira forma da existência humana, que é a Alma” como sublinha Denis de Rougemont, no prefácio à edição de Tristão, de André Mary ( Gallimard,1973).
Podemos dizer que a alma é o domínio das emoções e das paixões. Citando ainda Rougemont: ” a emoção é a prova da alma, como a sensação é a prova do corpo, e o pensamento a prova do intelecto. A paixão é uma pulsão que ultrapassa as leis… e que vai chocar com as convenções sociais”.
Para Rougemont o amor-paixão nasce da alma. E é no mito de Tristão e Isolda que encontra a sua expressão mais completa e trágica, ao mesmo tempo. É, como escrevi na citação inicial, o amor do Amor, mais do que o amor do objecto suposto.
Da lenda, fragmentada, repetida, distribuída por variados autores, talvez os mais importantes autores, para a biografia de Tristão, da infância à paixão e à morte, sejam: Béroul, poeta normando, que escreveu entre 1165 e 1170; Thomas, em Inglaterra, que surge uns anos mais tarde; e uma compilação em prosa do século XIII, refeita vezes sem conta, mas que contém vestígios da fábula primitiva; há ainda Gottfried de Strassbourg, que traduziu livremente Thomas de Inglaterra, sublinhando o lado de amor cortês da obra, e que Wagner cita. Estes são os modelos que melhor narram a biografia do herói.
No século XIX, na Alemanha, foi divulgada a tradução em alemão moderno de Hermann Kurz, (Stuttgart,1844) que Wagner leu e em que se inspirou para o seu libretto. Mas a sua relação com a lenda, e o mito, não é de seguidor fiel, antes pelo contrário: o que mais lhe interessa é, apesar do tema estruturante do amor, a carga schopenhaueriana, pessimista, radical, da impossibilidade de amar , pois toda a representação é ilusão. Em Wagner, ao longo da sua Obra, desmesurada, amar e trair andam a par, como se não houvesse nunca nem sublimação nem redenção possível.
Na Tetralogia assistimos a uma sucessão dramática de traições, que conduzem os deuses a uma decadência mais do que merecida. E mesmo em Parsifal, que Wagner trabalha a partir do Parzival medieval de Eschenbach, é a ferida da traição que marca toda ou quase toda a aventura do herói do Graal, redimido depois pela pergunta que faz, tocado de compaixão. Aqui o simbolismo é outro, o da mística das doutrinas maçónicas e do Espírito Santo, que os iniciados das Lojas, por força da leitura das obras de Joachim de Flora (já citadas por Lessing, nos seus escritos) conheciam bem.
No Drama de Tristão e Isolda, se a estrutura do mito se mantém, é no entanto mais diluída a sublimação daquele amor do Amor, o amar por si só, da entrega sem mais.
Wagner parte da leitura de Gottfried von Strassbourg, mas o que mais o entusiasma, nesse tempo de leituras, literárias para a elaboração dos seus Dramas, ou filosóficas, para a estruturação de um Idealismo (a Obra total) que também queria que fosse inovador, é a filosofia de Schopenhauer, como já referi, expressa no célebre tratado de O Mundo como Vontade e Representação. Estes conceitos iluminam, como ele diz, o seu espírito, e a sua Weltanschaung (a sua visão do mundo). Para ele, a seguir a Kant, não há maior filósofo, e se em Kant o predomínio da Ética, da Razão Prática, podia causar problemas à sua narrativa, com Schopenhauer e o seu pessimismo negacionista, que retirava o real da realidade, não havia perigo.
No romance de um Tristão e Isolda medievais, a lição, resumida de modo simples e directo é a da quebra dos códigos de ética do ideal cavalheiresco: fidelidade ao rei e respeito amoroso por uma Dama intocável. Já nos heróis de Wagner, tal como ele os concebeu, a questão é mais complexa e abrangente: pode o impulso de alguém, ao atrair e ser atraído, trair, sem consequências? Wagner viveu traindo, e exprime essa noção em muitas das conversas que surgem nos Diários de Cosima, fonte ineludível do seu carácter, inquieto, inspirado, mas egoísta e quase podemos dizer por vezes cruel. Sem falar da relação com o Rei Luís II da Baviera, seu protector entusiasta e submisso, podemos referir o caso Wesendonk, o casal que o acolheu na Suiça, a ele e a Minna, sua primeira mulher e que aproximou Richard e Mathilde na paixão que esteve na origem do célebre ciclo dos Wesendonk Lieder, para voz e piano, em 1854. Os poemas são de Mathilde, apaixonados e algo ingénuos, para o nosso gosto de hoje, mas é a música que os acompanha que os transfigura e torna sublimes. Nasce aqui a ideia de um Tristão e Isolda que exprima o sentimento de um amor absoluto e impossível.
Mas afinal de que espécie de Amor estaremos a falar?
De um amor sem remorsos, que em si mesmo se justifica, ainda que em detrimento do outro, dos outros e até por fim da própria vida?
De um amor que sendo total só pode realizar-se na morte? Só o vazio da morte o pode tornar sublime e, porque houve transgressão das normas morais e sociais, redimir?
É Wagner quem toma a palavra, num relato de 1862, de que faço um resumo :
“Com os esboços de Tristão e Isolda, não me pareceu que me tivesse afastado muito da esfera do meu trabalho sobre os Nibelungos, que me despertaram para visões poéticas e míticas. Todo o conjunto dos verdadeiros mitos, tal como se apresentaram nos meus estudos, clarificaram os que sobressaíam desse conjunto. Fascinante foi o da atracção de Tristão e Isolda posta em relação com a de Siegfried por Brunnhilde. Descartando a questão do motivo do tempo, descobrimos como se manifesta a relação mítica de duas aparentemente diferentes situações. A semelhança reside no facto de Tristão, como Siegfried, deverem ambos a sua situação a uma Ilusão, que no caso de um leva a uma perda de liberdade, e no caso de outro leva a uma libertação que depois, devido a um engano, o levará à morte. Se no caso do autor do Mito dos Nibelungos o que lhe interessa é mais o panorama geral que conduzirá à traição última e queda dos heróis, no caso do autor de Tristão a matéria da narrativa é a do sofrimento do amor (Liebesqual) que a ambos conduzirá a um destino de morte. O que se exprime é a morte através do amor, e foi isto que me entusiasmou no tratamento do tema: ampliar o mito dos Nibelungos até uma dimensão universal” .
Não é pois de Amor que se fala, mas de Morte: da ligação intrincada entre ambos, por meio de um par mítico, nascido da consciência que surge, no mundo ocidental, da Ilusão (nas vontades e traições do mundo) e acima de tudo da sua finitude.
Era ainda esse sentimento, sempre presente em Wagner, que o levara a escrever a Liszt, em carta de 1854: “Quando penso nos tormentos do meu coração…encontro (referia-se à leitura de Schopenhauer) um lenitivo que me ajuda a dormir; é a sincera e íntima saudade da morte: perda absoluta da consciência, o Nada total, o desaparecimento de todos os sonhos – e finalmente a suprema Redenção.” (Richard Wagner, Die Musikdramen,dtv,1978, in Dokumenta, p.387).
O Motivo de que menos se fala, de tal modo a dimensão do Amor e da Morte absorve este universo wagneriano, é o da Ferida: em Parsival assume um simbolismo fortíssimo, equivalente ao da ferida de Jesus sacrificado para ser, cumprindo os desígnios do Pai, o Redentor. A dimensão religiosa e mística é inegável.
Mas em Tristão e Isolda, se lermos com cuidado, a Ferida está igualmente presente: abre o primeiro acto, e fechará o terceiro. Tristão foi encarregue de levar Isolda para casar com o rei da Cornualha, o rei Mark. Durante a travessia recusa-se a vê-la e é o seu escudeiro, Kurwenal, que leva e traz recados. Isolda conta à sua aia, Brangaine, que reconheceu nele o cavaleiro que a raptou do seu noivo, ficando ferido, e que ela tratou sem nunca lhe falar do seu amor. Deseja agora que Brangaine prepare um veneno para ambos, que os mate, mas a aia prepara um filtro de amor. Bebem-no, e tomam consciência do amor que escondiam.
Paremos na ideia da Ferida: basta lembrar Fernando Pessoa, para relacionar a ferida com a dôr da existência, da consciência que dela se adquire, ao viver, que é na sua Obra um leitmotiv que podia ser wagneriano…
Mas na ópera: primeiro a ferida e logo a consciência de um amor feito de paixão (ainda que por força de um elixir mágico) impossível.
No segundo acto, em que Tristão e Isolda se entregam um ao outro, Melot ataca Tristão, que é de novo ferido. Isolda declara que o seguirá para onde ele fôr, quando ele decide partir para uma região longínqua, onde nasceu. Assim regressa Tristão, em novo momento simbólico, ao Princípio dos Princípios…a morte não deixa de ser um novo nascimento, Isolda segui-lo-á!
No terceiro acto encontraremos o herói no seu castelo, agonizando, enquanto aguarda que chegue Isolda no seu barco, como Kurwenal já tinha combinado. A notícia da sua chegada fá-lo correr para ela, e sucumbirá no seus braços, quando estava a chegar um segundo barco em que o rei Mark trazia o seu perdão. Mas não haveria saída, nem para a coerência do Drama nem para o Mito do Amor e da Morte, cuja matriz arquetípica é a ferida mortal da existência humana.
Yvette K. Centeno
Maio, 2021
Banner – Tristão e Isolda (Morte), Rogelio de Egusquiza, 1910
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Querida Yvette, é sempre um prazer ler os seus textos. Não porque que sejam fáceis mas pelo prazer de ir desbravando o texto e de ir avançando passo a passo na descoberta de novos conceitos. Em suma, um verdadeiro estímulo para aprender sempre mais qualquer coisa, que, no caso vertente, é mesmo muita coisa. No fundo, vendo bem, os acordãos do Supremo Tribunal também são verdadeiros mitos: Não são mais do narrativas fundadoras que indiciam uma mudança no comportamento civilizacional e cultural.
Bjs