De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Rúben dos telemóveis

Sentado nas escadinhas da Sé como de costume, lá está o popular “Rúben dos telemóveis”, como toda a Rua das Canastras o intitula (sem eu nunca ter percebido porquê). Normalmente cantarola uns fados, e diz quem já o ouviu à noite em Alfama que é um bom cantador. Espreguiçando-se, levanta-se dizendo: «Vou andando que a minha vida não é isto! Prontos, só vou até ao Rossio, e à noite não saio, estou farto de trabalhar à noite, já não tenho idade. Hoje fico a ver a bola. Logo há jogo no Sporting com os ingleses, lá tenho eu que ir ver os bifes entornados de cerveja! Já deve estar tudo cheio deles pela Baixa fora, então a esplanada da Suíça!».
E eu fiquei a pensar em que trabalharia o Rúben, percebia-se que era um trabalho independente sem horários fixos. Mas o que é que venderia ele no Rossio?
À tardinha, encontro a mãe do Rúben, a D. Lurdes, à porta da padaria, onde dá sempre dois dedos de conversa. Chega um homem que se mete num carro ali estacionado. Exclama ela:
«Este malandro é um carteirista no eléctrico 28. Estaciona o carro aqui todas as manhãs para ir trabalhar. Patife, fica com o dinheiro e os pertences das pessoas! São uns canalhas, estes carteiristas! A senhora já viu o que é uma pessoa ficar sem documentos nem nada?! Então os estrangeiros…veja bem! Já viu o desarranjo que é?». E eu:

-Lá isso é, D. Lurdes.

Ela continua a palestra: «Cá o meu Rúben…, Deus me livre de ficar com o dinheiro dos outros e então os documentos! É muito sério, lá isso é… prontos, arranjou o seu negócio… o que havia de fazer! Ele chegou a trabalhar para um despachante lá para o Cais Sodré, mas tudo isso acabou… Mas é uma jóia de moço (não desfazendo). Olhe, de todos os que andavam na escola com ele, foi o que deu melhor, nenhum saiu tão bem. O Vítor, tá bem, que é empregado bancário, mas é um parvalhão que nem fala à gente quando vem cá à rua. Não liga nenhum à mãe dele, que bem precisava, coitadita! Agora o meu filho! Ainda outro dia me deu um plasma para eu ver as novelas como deve ser! O Quim, outro que andava com ele na escola, a vida dele foi só droga e prisão. Agora está cá fora, mas é só pele e osso, uma desgraça! O Zé do Arco Escuro, esse foi só vinho, é um maluco por mulheres, já vai na quinta, agora tem uma brasileira mais nova vinte anos… Há-de ir longe, da raça que elas são! Pois olhe, o meu Rúben só namorou uma vez, foi com a Fátima, a filha do Hermano. Agora é só putas (com a sua licença). Não quer enredos com ninguém, para quê? Pra engravidarem e eu é que tenho que pagar os abortos, como foi com a Fátima? Ainda por cima foi com aquele fulano do Barreiro, que diz o Hermano que é rico e lhe pôs uma casa que é um mimo! Pois que seja, mas quem lhe pagou o aborto fui eu!».

– Lá isso é D. Lurdes.

«Não senhora, o meu Rúben não tem vícios. Tem lá o seu negócio, lá isso tem, mas a vida não está bem pra ninguém! Olhe, eu também sei como é, ganhei muito dinheiro quando era peixeira, bons tempos, cheguei a comprar uma casinha na Charneca e tudo. Mas tudo mudou, e eu sozinha, bem vê…tive que vender a casinha e o ouro que tinha!».

– Lá isso é, D. Lurdes.

Ela continua: «Olhe, o meu filho toda a gente o estima, por alguma coisa é. Vou-lhe contar uma coisa». E empurrou-me para a porta de sua casa que é pegada à padaria, onde tropecei no gato e fiquei colada à gaiola do periquito.
«Ouça só isto, para ver como ele é educado: Ontem à noite tocou um telefone e vai o meu Rúben e atende:
“Sim, minha Senhora, é do 919987699. Ah, sim, é a dona deste telemóvel?… Sim, sim, fui eu que o roubei… é que eu roubo telemóveis… pois, como queira, prontos, sou ladrão de telemóveis! Mas ainda bem que falou, pois na pochete que eu trouxe vieram cartões do banco e documentos… Pois claro, fazem muita diferença…com certeza… Dê-me a sua morada, que eu mando-lhe tudo isso por correio azul… Bem, claro que sou ladrão, Senhora D. Mafalda… Como sei o seu nome?…Estou a olhar para o seu BI. Se quiser falar com a polícia, fale, mas eu não quero nada que é seu. A polícia não me pode encontrar, não vou atender mais este telefone. E como está a bateria a acabar-se, agradecia que aproveitasse a ocasião para me dar a sua morada… Bem, o telemóvel…isso não lho posso dar, é o meu trabalho, compreenda!… Claro, faz favor de dizer, Mafalda Almeida e Cunha, rua Tristão Vaz, nº 12, Restelo, claro, claro…” Vai daí, foi ele mesmo hoje ao correio, com este calor, veja bem, coitadito, e manda tudo à senhora. Olhe, minha senhora, filho como o meu não há, Deus lhe tivesse dado assim um, não desfazendo, é claro».

– Lá isso é D. Lurdes.

 

Manuela Carona
Agosto, 2018

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Escrito por

Actriz, nasceu em 1947, natural do Porto, vive em Alfama

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Últimos comentários
  • Ainda há gente honesta…e um bom filho!

  • Uma Lisboa que já não existe…