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Música popular: gaita mirandesa

Que seria da música de Corelli ou Vivaldi sem os grandes construtores de violinos do século XVII: o Stradivario, o Guarneri ou o Amati? Que seria da música de Chopin, Liszt ou Schubert sem os pianos feitos em Viena por Mathias Müller, Johan Baptist Streicher e outros? Que tocaria Charlie Parker sem a invenção do saxofone em 1840 pelo belga Adolphe Sax ou Louis Amstrong sem a famosa trompeta que Henri Selmer fez para ele em Paris?
Quando a sociedade camponesa transmontana entrou nos seus últimos estertores na década de sessenta, no meio do surto migracional, a música dessa sociedade entrou também em crise—não era tocada nos rádios, nas televisões… As gaitas que antes faziam a festa passaram a ser penduradas nas paredes das casas dos emigrantes, celebrando um estilo de felicidade que continuava a ser nostalgicamente lembrada mas que não era já realizável. Não eram mais instrumentos musicais, eram instrumentos da memória que ninguém já sabia tocar.
Contrariamente às violas e órgãos eléctricos que agora acendiam o ar da festa, nas festas camponesas de “antes”, os fabricantes, os compositores e os instrumentistas confundiam-se; os velhos gaiteiros faziam as suas próprias gaitas. Tinha havido muito saber prático, mas pouca ciência—nos anos setenta, os saberes de fabricação morreram e as próprias escalas (as que continuavam a soar bem ao ouvido local) não pareciam já ser realizáveis com as novas gaitas vindas da Galiza. A chegada da electricidade tornou a vida muito mais fácil, mas também abriu um espaço de ignorância e quebrou o desenvolvimento autóctone de uma riquíssima e antiga tradição musical radicada tanto no milenar pastoreio como na música eclesiástica barroca de tempos tão antigos que tinham sido até esquecidos.
No Planalto Mirandês, na última década, a sociedade recompôs-se da grande crise migracional do salazarismo tardio. A democracia trouxe novas formas de ser e fazer; uma nova civilização cívica; nova música. Voltaram a emergir talentos: novos construtores que, se bem que sendo também homens práticos, são bons músicos e levam a gaita mirandesa e a sua tradição musical a novos píncaros.

A Gaita Mirandesa, à semelhança de outras gaitas, pode dizer-se que, grosso modo, é constituída por três grupos de peças:
1. A PONTEIRA, peça (flauta) através da qual se executa a melodia a ponteira tem como fonte sonora uma outra peça a ela acoplada, onde vibram de forma regular duas folhas de cana uma contra a outra, e que é denominada simplesmente palheta, ou palheta dupla;
2. O RONCO, grupo de três tubos acoplados, cuja função é produzir um som grave e contínuo, dito bordão ou nota pedal, e cuja fonte sonora a si acoplado, é uma palheta simples ou batente, pois bate contra a cana, na qual foi cortada e que se denomina de palhão;
3. O BOTO ou FOLE, a parte mais característica desta gaita. O fole funciona como reservatório de ar que, depois de insuflado através do SOPRETE (pela boca do músico), quando pressionado com o braço, força o ar a sair pelas duas aberturas que tem (a ponteira e o ronco) fazendo vibrar a palheta na primeira e o palhão no segundo. Este, até à bem pouco tempo era feito de pele de cabrito, sendo atualmente elaborado com Gore-tex®, material sintético com uma membrana microporosa “respirável”.
É o facto de a saída de ar ser contínua, obrigando o gaiteiro ao uso de recursos de dedilhação na ponteira, que distingue os gaiteiros e o “jeito mirandês” de tocar. Diz-se mesmo do bom gaiteiro que ele “mexe bem os dedos”.

Os dois filmes curtos que Manuel Ribeiro do Rosário aqui vos apresenta celebram Célio Pires e Henrique Fernandes, dois dos músicos/instrumentistas, naturais da Terra de Miranda, que muito têm feito para o renascimento da gaita mirandesa. Agradecemos a Daniel de Pina Cabral por ter-nos lá levado e a Abílio Topa por nos ter ensinado o que estava em causa.

João de Pina Cabral
Janeiro, 2019

Fotos de Manuel Joaquim de Pina Cabral

Videos de Manuel Rosário

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Escrito por

Antropólogo social, Investigador Coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Foi Presidente da Associação Europeia de Antropólogos Sociais entre 2003 e 2005. Entre muitas outras obras é autor de Between China and Europe: Person, Culture and Emotion in Macao. Continuum/Berg, Nova Iorque, 2002 e co-editor com Frances Pine de On the Margins of Religion, Berghahn, Oxford, 2007.

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Últimos Comentários
  • OBRIGADO !!!!
    Obrigado por partilharem comigo um assunto interessantíssimo. Obrigado por partilharem comigo o que aprenderam sobre o mesmo, pela união mágica entre entretenimento e Informação que gostaria de ver mais no DOMA. Obrigado.
    Vaz Carneiro