Em 1838 Stendhal utiliza o termo francês touriste [1] para designar o viajante, o protagonista do Grand Tour, em voga na aristocracia da época cuja principal finalidade era ampliar a formação do jovem adulto por via dos prazeres sensuais proporcionados pela viagem.
Emil Brack (1860 – 1905), Planning the Grand Tour
Este rito de passagem revelava ao turista efebo não só a geografia clássica de uma Europa culta como também os confins do mundo com populações insólitas e paisagens fabulosas como testemunhos da origem mitológica do mundo, fomentando a lenda popular, o conto infantil, o diário de viagem. Esse elemento onírico do “exotismo” serviu como contraponto a uma civilização industrializada, no seio da qual ocorreram transformações relevantes tanto na história do trabalho como na história do lazer, termos que, de resto, são indissociáveis. Como tal, as actividades de lazer obedecem a um preceito social que desde logo as distinguiu em práticas enriquecedoras com vista a um progresso pessoal (de que a tour é expressão ritualizada) e as distracções consideradas pouco respeitosas, como os prazeres efémeros proporcionados, por exemplo, pelas experiências balneares ou pelo convívio despropositado. Esse otium cum dignitate, exclusivo às elites da época, vê-se ameaçado com a emergente massificação do lazer facultada com os caminhos-de-ferro e um sistema laboral que licencia a classe proletária a revigorar forças com a “mudança de ares”. Este enquadramento terapêutico do tempo-livre e a vulgarização da viagem (com a proliferação do caminho de ferro e agenciamento das viagens a partir de Thomas Cook) leva à invenção e popularização da praia, primeiro como instância medicinal em moda e posteriormente como lugar de recreio, proporcionando um lazer sensual, erotizado, transformando o banhista e o viajante numa criatura lúdica e turística, agora preocupado com a construção e encenação duma identidade proporcionada por essa liberdade licenciosa durante o tempo livre, sobretudo, as férias. “Lazer” (do latim licere, ser lícito, permitido) é já por si expressão de uma legitimação condigna do farniente, positivando o tempo morto em tempo livre, ao contrário do otium, que assume a expressão da condenação ao tédio, ao peso das horas, ao tempo-morto. A liberdade licenciosa de outrora, vinculada aos calendários rural e religioso, é redefinida em função de um mundo industrializado. Deslocada para o Verão, esta liberdade licenciosa, assume uma condição edénica, em que o corpo do trabalhador se metamorfoseia num corpo livre, tornando-se senhor do tempo, regressa aos lugares de identidade (a aldeia, a casa de campo, a família, a mãe-natureza, os monumentos fundadores), tudo isso escrupulosamente ritualizado com a partida da viagem, encenando o abandono físico deste mundo para um outro manifestando assim uma catarse simbólica na demanda do paraíso ou tempo perdido.
As utopias sociais – as aspirações da razão moderna – exprimem de um outro modo a ambição colectiva à vida boa, evocando imagens de um estado de graça na terra, que rapidamente se vê pervertida pelos anátemas do progresso. A mecanização do trabalho e a invenção do subúrbio industrial, por exemplo, resultam numa imagem diabolizada do sonho original do paraíso, paraíso esse que a cultura contemporânea desloca para o domínio do tempo livre e das férias, abrindo espaço à emergência do fenómeno do turismo enquanto indústria da alma[2]. Se pelo trabalho e pela vocação o homem encontra a possibilidade de se definir moralmente, através de um esforço ascético no interior da sociedade, na vida laica, onde o sucesso é marca de eleição (Max Weber), teremos então de propor que o turismo, enquanto dispositivo social do princípio de prazer, espelha essa marca de eleição, apresentando propostas comerciais para uma salvação individual, sugerindo o prazer de passar-o-tempo, um estado de graça diametralmente distinto das horas mortas do otium. O resort turístico, enquanto arquétipo do bem-estar e morada dos bem-aventurados, apela a um idílico estado de natureza simultaneamente perdido e próximo, simultaneamente sofisticado e inacessível.
Em síntese, a figura do turista encerra em sim mesmo um conjunto de tensões insolúveis: simultaneamente imune, alienado, desobrigado e interessado, mas sobretudo livre, o turista entra em cena, em qualquer parte do globo, convertendo o mundo num espaço performático. O turista é assim uma criatura pacífica, estimada e repudiada, transformando-se ele próprio num ser merecedor de observação e estudo.
[1] Mémoires d’un touriste
[2] Se não podemos dissociar “turismo” de “animação”, também não se pode dissociar “animação” de “alma” (lat. anima)
Ivo Carmo
Setembro, 2019
Fotos de Minnie Freudenthal e Manuel Rosário