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Presente de aniversário

Era o dia do seu aniversário, vinte e um anos, pensou! Atingira a maturidade no outro lado do mundo protegido. Aqui é proibido não se espantar por existir, pensou no lema do seu mundo, rodeado de ideias luminosas de “João sem medo”. Agora estava na casa onde se andava de mãos no chão e pés no ar e se chupavam cérebros por uma palhinha.

Acordou surpreendido por sonhos assustadores de sombras negras a perseguirem-no e a transformarem-se em figuras humanas, a gritar e a dar surpreendentes bofetões. É só um sonho, pensava no sonho.

Sentiu frio e procurou o cobertor que não encontrou. Percebeu-se então vestido e deitado num lugar escuro. Doía-lhe a face mas dormitou de novo.

É o dia do teu aniversário respondeu o sonho.

De repente ouviu um barulho de passos fortes, portas a bater, de alguém a cair com estrondo no corredor e a ser arrastado até ao silêncio do recinto da parede ao lado. Acordou estranhando o sonho.

Percebeu que o dia em que se nasce e se festeja a data era de medo e certamente não iria receber o beijo da mãe, nem a flor que todos os anos lhe oferecia na ocasião, acompanhada de um bilhete pequeno: ” Para o meu bicho especial, no dia em que me tornei mais pessoa”.

Uma rosa bonita e orgulhosa colocada pé ante pé para não o acordar na mesa-de-cabeceira, junto ao livro semi-aberto, com os óculos a servir de marca. E um beijo suave que ele fingia não perceber, continuando de olhos fechados.

Sorriam ambos para si mesmos, nesse fingimento cúmplice.

Nunca lhe faltou a rosa cheia de vida a anunciar futuros. Desta vez acordou sem beijo, num cubículo escuro e sem homenagem à vida, dorido de corpo e alma e com frio.

A certa altura apareceu um guarda que o olhou de soslaio ao lembrar-se do filho que por lá tinha em casa e que o contestava.  Embora fosse o primeiro da família, vinda das Beiras, a aprender umas letras e com a mania que era mais esperto do que ele, sentia algum orgulho por o saber a subir a doutor. A verdade é que, talvez por ter semelhanças físicas com o rapaz preso, falou com outro tom na voz: “Tem aqui uma encomenda para si. Não é todos os dias que tenho esta simpatia, não pense. Mas pronto, pegue lá a prenda que lhe mandaram e este púcaro de chá”. Era um livro, com o papel de embrulho já meio rasgado, nada suspeito.

Abriu, curioso. Nele viu poemas de Fernando Pessoa e enquanto o folheava, de repente, caiu do seu interior, de entre as folhas, uma pétala de rosa vermelha.

Leonor Almeida
Março, 2024

Nota: Este conto é uma homenagem ao valor da liberdade em todos os momentos da nossa vida. Um bem a não perder. Foi influenciado pela recordação de uma pequena história, que li há muitos anos, escrita pelo Manuel Alegre, em homenagem ao “Dia da mãe.

Foto de Manuel Rosário

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Escrito por

Maria Leonor Duarte de Almeida é oftalmologista em Lisboa - cidade onde nasceu. Mestre e Doutorada em Bioética leccionou na Faculdade de Medicina de Lisboa como Professora Auxiliar em Oftalmologia. A escrita tem tido uma presença na sua vida, mas somente em 2002 se expôs como escritora. Publicou cinco livros de ficção, um livro de ensaio sobre Autonomia em Bioética, em 2008, e viu o seu trabalho reconhecido pela crítica, recebendo o Prémio Revelação da SOPEAM, sendo ainda distinguida como premiada em Novos Autores Portugueses, pelo do IPLB em 2002. É membro da Associação Portuguesa de Escritores.

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Últimos comentários
  • Tocante

  • Querida Leonor, adorei este conto e, a medida que o lia ia-o associando ao Manuel Alegre e às rosas que recebeu da mãe quando passou o aniversário na prisão. Muito obrigada, Leonor.

    Precisamente ontem à noite li a reportagem sobre os teus anos de SMP e… adorei. Sou de História e este tipo de histórias sobre acontecimentos que foram determinantes na vida de todos nós, preenchem-me.
    Concordo convosco, hoje devia voltar-se ao SMP.
    Beijinhos e muito obrigada.