De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Pesadelo novo

Era uma vez um homem jovem que tinha como característica ser invulgarmente belo.
Quando tentou entrar num país de pessoas muito feias, porque fora convocado a produzir umas acrobacias, derivado à sua prática circense, viu-se subitamente impedido de o fazer.
Os seus conhecimentos em determinadas funções de saltimbanco garantiam-lhe um lugar de rato de cidade nos países dos feios. E além disso cumpria os pressupostos expressos no passaporte que exibia, livre de carraças, pulgas, doenças venéreas ou condenações em tribunal.
Mas infelizmente para o homem o seu passaporte evidenciava uma fotografia demasiadamente bela para os habitantes daquele país, apesar de esbatida por muitas viagens e mãos aduaneiras. Nem mesmo na cidade mais remota e periférica existia alguém menos feio que o pudesse receber no referido país. Eram todos medonhos.
Então o homem ficou na fronteira durante um tempo ilimitado e num lugar de limbo ou melhor dizendo no NIM a aguardar um envelhecimento precoce que lhe pusesse uma cara mais mascarrada pela sujidade, dado que a fronteira não tinha canalizações, esgotos ou mesmo água em cisternas, para um banho refrescante. Somente um garrafão de onde quase a medo se podia beber um pouco de água e esperar.
O homem ainda tentou discutir com o guarda da fronteira a quem mostrou o boletim de vacinas, o cartão de sanidade física e mental que apertou entre os dedos com tanta força que fez uma nódoa negra.
Depois despenteou o cabelo, também sem efeito.
Deu conta de uma enorme dor de cabeça resultante do movimento incessante de puxar os cabelos para a frente e para os lados a fim de obter um ar amalucado, acalentando em simultâneo a esperança de se tornar mais feio.
De nada valeu o esforço e por isso decidiu não discutir intelectualmente com cancelas automáticas transformadas em homens que abrem e se fecham sem critério intelectual. Descobriu que o país “onde era proibido não se espantar por existir” fazia parte do sonho e que na verdade o mundo era mesmo intolerante, sobretudo para quem como ele nascera com o defeito de ser belo.
Acordou no dia seguinte com uma enorme enxaqueca, correu até ao espelho e continuou a ver-se belo e limpinho.
Era cedo mas o calor transbordava da rua para dentro de casa.
Tivera APENAS um pesadelo.

 

Leonor Duarte de Almeida
Outubro de 2018, num abafado início de Outono

Fotografia de uma parte do quadro Hell de Hiëronymus Bosch

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Escrito por

Maria Leonor Duarte de Almeida é oftalmologista em Lisboa - cidade onde nasceu. Mestre e Doutorada em Bioética leccionou na Faculdade de Medicina de Lisboa como Professora Auxiliar em Oftalmologia. A escrita tem tido uma presença na sua vida, mas somente em 2002 se expôs como escritora. Publicou cinco livros de ficção, um livro de ensaio sobre Autonomia em Bioética, em 2008, e viu o seu trabalho reconhecido pela crítica, recebendo o Prémio Revelação da SOPEAM, sendo ainda distinguida como premiada em Novos Autores Portugueses, pelo do IPLB em 2002. É membro da Associação Portuguesa de Escritores.

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Últimos comentários
  • Que extraordinária pequena história !
    Obrigado Leonor. José Vaz Carneiro

  • História tão fantástica e ao mesmo tempo tão real. Boa, Leonor!