Era uma vez um homem jovem que tinha como característica ser invulgarmente belo.
Quando tentou entrar num país de pessoas muito feias, porque fora convocado a produzir umas acrobacias, derivado à sua prática circense, viu-se subitamente impedido de o fazer.
Os seus conhecimentos em determinadas funções de saltimbanco garantiam-lhe um lugar de rato de cidade nos países dos feios. E além disso cumpria os pressupostos expressos no passaporte que exibia, livre de carraças, pulgas, doenças venéreas ou condenações em tribunal.
Mas infelizmente para o homem o seu passaporte evidenciava uma fotografia demasiadamente bela para os habitantes daquele país, apesar de esbatida por muitas viagens e mãos aduaneiras. Nem mesmo na cidade mais remota e periférica existia alguém menos feio que o pudesse receber no referido país. Eram todos medonhos.
Então o homem ficou na fronteira durante um tempo ilimitado e num lugar de limbo ou melhor dizendo no NIM a aguardar um envelhecimento precoce que lhe pusesse uma cara mais mascarrada pela sujidade, dado que a fronteira não tinha canalizações, esgotos ou mesmo água em cisternas, para um banho refrescante. Somente um garrafão de onde quase a medo se podia beber um pouco de água e esperar.
O homem ainda tentou discutir com o guarda da fronteira a quem mostrou o boletim de vacinas, o cartão de sanidade física e mental que apertou entre os dedos com tanta força que fez uma nódoa negra.
Depois despenteou o cabelo, também sem efeito.
Deu conta de uma enorme dor de cabeça resultante do movimento incessante de puxar os cabelos para a frente e para os lados a fim de obter um ar amalucado, acalentando em simultâneo a esperança de se tornar mais feio.
De nada valeu o esforço e por isso decidiu não discutir intelectualmente com cancelas automáticas transformadas em homens que abrem e se fecham sem critério intelectual. Descobriu que o país “onde era proibido não se espantar por existir” fazia parte do sonho e que na verdade o mundo era mesmo intolerante, sobretudo para quem como ele nascera com o defeito de ser belo.
Acordou no dia seguinte com uma enorme enxaqueca, correu até ao espelho e continuou a ver-se belo e limpinho.
Era cedo mas o calor transbordava da rua para dentro de casa.
Tivera APENAS um pesadelo.
Leonor Duarte de Almeida
Outubro de 2018, num abafado início de Outono
Fotografia de uma parte do quadro Hell de Hiëronymus Bosch
Jose Vaz Carneiro | 2018-10-07
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Que extraordinária pequena história !
Obrigado Leonor. José Vaz Carneiro
Isabel Almasqué | 2018-10-08
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História tão fantástica e ao mesmo tempo tão real. Boa, Leonor!