De A a Z, tudo se pode fazer DE OUTRA MANEIRA...
 

Os velhos do meu bairro

Vou numa rua de Campo de Ourique.

Abre-se à minha passagem, uma pequena janela de um rés do chão.

Aparece-me a cabeça muito branca:

Está mais calor hoje, não acha, minha senhora? E ontem o inferno que esteve!

Tem razão, respondo, “Hoje está muito mais calor.

E a velhinha sorri de orelha a orelha, sentindo que tem a minha atenção. Deve ter pensado: “Apanhei-te!” Olha-me com a satisfação de quem me esperava há muito tempo e como se o nosso encontro a fizesse muito feliz.

Quando necessita de comunicar com alguém, abre a janela e fala com o primeiro transeunte que passa. (Em vez de ir para o facebook). Como nem todos devem ser cooperantes, vinga-se comigo:

“Não imagina como esta casa é quente, já os meus dois falecidos diziam o mesmo. O meu primeiro deixou-me, foi para África e arranjou por lá ‘uma de raça’. Mas olhe, não me fiquei! Deus enviou-me um viúvo. Conhecemo-nos nas Testemunhas de Jeová.”

Seguiram-se meia hora de histórias. Esta tem mesmo sorte em viver no rés do chão!

Vou numa passadeira de peões e uma velhinha diz-me:

Ó querida, dá-me uma ajudinha? E enfia o braço no meu, com uma tal camaradagem, que me fez ternura.

Agarrou-se bem a mim, e eu apertei o meu braço contra o dela. E enquanto atravessávamos a Coelho da Rocha, ainda teve tempo para dizer:

Obrigado minha santa, olhe, vivo ali mais à frente, está a ver o prédio cor de rosa? É no segundo, quando quiser toque que eu venho logo à janela, Deus lhe pague, minha querida.

Não me parece que ela precisasse mesmo de me dar o braço, até porque caminhou sem dificuldade!

Mas aquele ‘braço dado’ foi muito bom e gratificante  para as duas.

Chegou o Outono.

Cheira a castanhas assadas. Começaram as escolas.

Por volta das cinco, as ruas estão cheias de velhos e velhas com crianças pela mão. Esperam, conversando uns com os outros à porta das escolas, e acolhem os netos de braços abertos, no meio da euforia da hora da saída. Com uns ares muito orgulhosos, levam as crianças a lanchar ao café onde gastam o que a reforma não lhes dá. Lembram-se de quando eram crianças e comiam ‘sopas de cavalo cansado’ e apanhavam com um chinelo na cabeça, por tudo e por nada, (quando não era um objecto mais pesado).

Depois, sentam-se num banco do jardim a admirá-los nos baloiços e escorregas.

A maioria, com a idade dos netos já estava a trabalhar! Não tiveram infância, mas tratam os netos com toda a paciência do mundo, com uma generosidade infinita.

São os seus príncipes.

Passo pelo Jardim da Parada, onde grupos de velhos jogam às cartas.

Às vezes zangam-se e atiram as cartas ao chão.

Às seis da tarde, começando a arrefecer, lá vão eles para casa, ajeitando o boné na cabeça.

São os velhos do meu bairro.

Vejo-os incrédulos a olhar para o preço das coisas no super mercado. Saem com um saco com três coisas, sorrindo para quem está a seu lado. Estão sempre dispostos a dar informações, conselhos, ajuda:

“Olhe que o sapateiro da igreja é bem mais barato do que este, fruta boa é no paquistanês da outra esquina.”

E sorriem sempre. Com as mãos gretadas, fazem festas nas cabeças das crianças com quem se cruzam. Espalham empatia.

Ontem fui visitar uma prima minha de oitenta e oito anos, que vive num lar. Apesar de ter dinheiro, empregada, tudo, os filhos acharam que ela ‘estaria melhor’ no raio do lar. Pagam quatro mil e quinhentos por mês.

Ela odiou, mas acabou por se calar, não se queixa. Percebeu que não havia nada a fazer, e que o melhor era agradar-lhes.

Sabes, mais vale não dizer nada.

Sente se muito só, apesar de ter muita gente à volta. Está cansada de fazer conversa de circunstância com pessoas com quem não  tem nada em comum.

É uma mulher inteligente, culta, o marido era um poeta de relevo. Viveu sempre rodeada de gente interessante.

Está muito bem de raciocínio. Não é surda, mas os cuidadores falam-lhe aos berros. Falam aos berros a toda a gente. Diz-me que às vezes finge que está a dormir, para estar um bocadinho sozinha com os seus pensamentos, para se fazer companhia a si própria.

Levo-lhe uns bolinhos para o lanche, mas fui interrompida por uma empregada:

“Podem comer agora, mas não pode deixar cá nada, os quartos ficam todos sujos.”

Passado um quarto de hora da visita, volta:

As visitas são até às cinco, desculpe lembrar, mas tem que sair dentro de um quarto de hora.”

Vejo-a angustiada, triste. Eu sem poder fazer nada! Está amarrada com um cinto à cadeira de rodas, embora ande muito bem.

Estava a ajudá-la a levantar-se, e volta a empregada:

“Isso não, NÃO! E agarra-lhe no braço com firmeza prendendo-a à cadeira outra vez.

Que horror, proíbem as pessoas de andar para não dar trabalho!

E vem logo o tratamento infantilizado, para disfarçar o mau trato e falta de paciência:

Ai, ai, ai sua marota, eu não disse para estar sentadinha??? Vamos  fazer um penteado todo giro para o jantar.

Ela sente-se diminuída na sua dignidade com esta conversa parva. E agarra-me no braço como se fosse uma tábua de salvação. Contou-me que lhe desapareceram os brincos que usava sempre, que eram da sua mãe.

Sabes, mais vale não dizer nada…

Falámos um bocadinho de Leça da Palmeira, dos conhecidos, das tias e das primas… Mas o diabo da mulher vinha sempre interromper para dar uma ordem:

Agora vamos lá, tem que se pôr na fila para o jantar, não quer ficar a jantar na cozinha, pois não??”

Que desagradável!

A vida da minha prima, as suas referências, os seus gostos, os seus desejos, eram constantemente interrompidos e deitados por terra, para se falar dos horários, do jantar, que é às seis, no ‘pode e não pode’, das regras do lar…

E ela calma. Conformada. Como se a sua vida não fosse senão uma sucessão de perdas das coisas que amava.

Levei-lhe o jornal Público, ela gosta de  ver a página da cronologia, saber se morreu alguém seu conhecido, saber como vai o seu mundo, a gente do seu tempo.

Foi logo repreendida pela cuidadora:

Isso não interessa nada, deixe-se de mortos, vamos mas é ver o Preço Certo.

Ela, que só procurava saber alguma novidade, referência sobre o seu mundo,( ou ex mundo), já tão longínquo…

Ela, que muitas vezes me diz, falando de alguém conhecido:

Quem me dera saber se ainda é vivo.”

Que injusto, que frustrante, que triste!

Como se já nem tivesse o direito de saber dos do seu tempo, de quem ainda cá anda. Como se agora tivesse que viver numa bolha, ausente de tudo, só porque é velha!

Apeteceu-me esganar a funcionária!

E fico a pensar que o que eu desejava mesmo para a minha velhice, era:

Andar a cambalear nas ruas e pedir a alguém que me ajude a atravessar a passadeira.

Falar com desconhecidos. Dar-lhes o braço.

Almoçar na pastelaria da esquina.

Assistir às crianças, aos gritos, a saírem da escola.

Sentar-me no jardim, ao fim da tarde, a comer castanhas assadas.

Ir às pastelarias, antes de fecharem, receber a oferta dos bolos e salgados que sobraram, como fazem as minhas vizinhas.

Recolher, só quando fizer frio, como os velhos que jogam à bisca no jardim da Parada.

Manuela Carona
Outubro, 2024

Fotos de Manuel Rosário

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Escrito por

Actriz, nasceu em 1947, natural do Porto, vive em Alfama

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Últimos comentários
  • Oh! Que tristeza. Há um peso silencioso nas sombras do tempo, como um nevoeiro denso que encobre o que já fomos. O esquecimento dos que amamos, a prole que se distancia, e a vontade que, aos poucos, perde voz. Restamos com o preço inexorável de pertencer ao incerto, àquilo que não podemos controlar, como folhas levadas por um vento indiferente. Obrigada pelo texto.
    Beijinho

    • Obrigado Rita. Penso que é urgente falar se neste tratamento aos idosos nos lares. Os curadores sem nenhuma empatia.

  • Obrigada pela partilha da sua sensibilidade
    Bem haja
    Meu coração ficou-lhe grato
    Já vivi tudo o que descreve

    • Obrigado por me ter escrito. Acho muito necessário falar se na falta de empatia e preparação dos curadores dos lares