Rosto envelhecido sulcado pelo vento e sal das ondas, trocámos breves palavras à porta duma tendinha onde ia tomar o mata-bicho. Perguntei-lhe sobre a ilha escarpada, ali em frente, pouso de aves e encosto de embarcações, pobres como ele. Ia para lá pescar toda a noite, com o irmão, tão velho como ele. Pedi-lhes que me levassem. Insistiram em fazer-me uma cama de mato e ervas secas e cantaram até ao despertar do sol. Para a menina não ter medo, disseram. Dividido um peixe assado na fogueira, o naco de pão e a garrafinha de bagaço para calar o frio, voltámos. Velha e pobre como eles, a casa, rodeada por um fio de terra onde plantavam feijões e batata. Despedi-me e comigo trouxe muito mais do que o pequeno saco de feijões que teimaram em me dar. Mestre Toino e Manel Raposo, enriqueceram, naquele dia, a miúda de 18 anos que eu era, e pouco ou nada sabia da ternura, do cuidar, do desapego.
Este pequeno episódio, de grande significado para mim, poderia ter-se passado com muitas outras pessoas, já na chamada 3ªidade. Artistas, operários, cientistas, escritores, técnicos, todos sem excepção, com o acumular dos anos, guardam dentro de si enormes riquezas e conhecimentos, experiência de vida que, por vezes, num pequeno gesto ou palavra, contribuem para o despertar de quem ainda pouco sabe do mundo e dos tesouros que os seus semelhantes, em particular os mais velhos, encerram.
E cabe aos mais velhos, ainda que por vezes castigados por duros percursos, o exercício de manter, se a saúde o permitir, um espírito desperto, jovem, curioso e disponível para não se fecharem dentro do passado, e livres de amarguras, se manterem presentes e abertos ao que se passa no mundo e a todos os que deles se aproximam. Assim se vão fazendo trocas que enriquecem quem dá e quem recebe, assim se vão criando pequenos momentos de cumplicidade que nos ajudam a viver porque aquecem os corações e nos enchem de esperança.
Estou grata a todos os que acompanhei ou conheci na velhice. Nem todos tinham histórias fascinantes para contar, nem vidas bem-sucedidas ou grande erudição, nem foram as melhores pessoas do mundo, ou tiveram vidas exemplares, mas como não ficar agradecida por toda a riqueza transmitida num sorriso, na confissão de um sonho, numa palavra cúmplice de um velho?
Nada perdeu valor ou se tornou insignificante nos velhos. A miséria está em quem os olha com indiferença, lhes retira dignidade, os trata como crianças, ou pura e simplesmente os considera invisíveis.
Agora que caminho para velha, e enquanto tenho saúde, sinto que o que perdi com o correr dos anos não é nada relevante, se comparar com todo o valor acrescentado que me trouxeram os obstáculos e desafios vividos como aprendizagem e expansão de consciência, e que só uma longa vida me deu, e continuará a dar, para o poder partilhar com quem me cruzo.
Ana Zanatti
Março, 2021
Fotos de Manuel Rosário
Isabel Almasqué | 2021-03-22
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Belo texto, Ana. O meu irmão costuma dizer que se deveria poder fazer o “back-up” do cérebro dalgumas pessoas, sobretudo das mais velhas, para não se perder a sabedoria e as experiências que acumularam. Quem sabe, talvez um dia…
Ana Zanatti | 2021-03-30
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Obrigada, Isabel. Sim, quem sabe um dia isso seja possível. Tanta riqueza acumulada que se perde com o tempo…