Morre-se aos poucos.
E esse morrer começa muito antes da velhice.
Uma parte de nós morre sempre que morre alguém, que amamos e que nos ama, porque essa pessoa leva com ela o seu olhar sobre nós, que é único.
Não há lugar para a morte. Mas é preciso dar um lugar à morte, para que a vida possa continuar.
A vida é também carregar os nossos mortos, no último sítio onde podem viver, na nossa memória.
Hoje quando abri o facebook, no mural de Z. estava uma mensagem, dizendo: «O meu avô morreu ontem. Obrigado a todos que o acompanharam. Ele gostava de falar convosco por aqui. Ficou em paz.»
Fiquei surpreendida, ainda há dois dias escrevia sobre as eleições…
Não nos víamos há muitos anos. Íamos falando pelas redes sociais.
Fomos muito amigos e camaradas nos tempos idos pós-revolução.
Era belo, talentoso e justo.
Lembrar-me-ei, sempre, da imponência da sua figura quando se levantava para tomar a palavra e da eloquência do seu discurso.
E depois havia a estroinice, e aí ninguém era tão autêntico como ele. As noites eram regadas e com muito humor. E muitas mornas. E nunca queríamos que acabassem…. Os dias começavam muito tarde e sempre com o intuito de nos encontrarmos outra vez! Queríamo-nos muito, uns aos outros. Não nos separávamos nunca. Havia uma comunhão, uma partilha de tudo. Dinheiro, casas, bens materiais, tudo se emprestava, tudo se partilhava.
Depois, os nossos sítios de encontro foram fechando, as pessoas perderam as casas e a foram viver para longe. Deixaram de beber ou deixaram de fumar. Reformaram-se. Deixaram de sair. Deixámo-nos de nos ver.
Por vezes, diziam “O Z. deu cabo da vida por causa da política. Arruinou-se familiar e profissionalmente. Ficou só, por causa das suas convicções”.
Arruína-se sim, quem anda ao favor do vento.
Ele foi íntegro. Construiu a sua vida com verticalidade.
Acreditou sempre e não se desviou do caminho.
Um dia, combinámos um encontro. Foi há catorze anos.
Vivia para os lados de Oeiras, num emaranhado de prédios.
Estava a convalescer de um problema de saúde.
Rimos, relembrámos velhos amigos e velhas histórias.
Tentámos pôr a vidinha em dia, não sem uma certa nostalgia.
E para disfarçar , despedimo-nos dizendo, «agora vamos ver-nos mais vezes, tu vais a Lisboa e eu venho cá…»
Separámo-nos numa grande praça deserta.
No táxi voltei-me para trás, e segui presa à sua figura que se afastava e era cada vez mais vulto, mais sombra, atravessando o descampado batido por rajadas de nordeste.
Sempre frente ao vento. Sempre a direito.
Foi a última vez que o vi.
Manuela Carona
Fevereiro, 2022
Foto de Manuel Rosário
Rita V. | 2022-02-21
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“Um dia, combinámos um encontro.” É tão verdade.
beijinho
Manuela Carona | 2022-02-21
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Sim Rita. Obrigado. Um beijinho
José Brás | 2022-02-21
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Que maravilha pela parte da verdade que parece brotar de cada palavra que nos empurra para o fundo do seu sentido e para a descoberta da palavra seguinte, sem quase necessitarmos de as juntar para as sentirmos todas!
Manuela Carona | 2022-02-21
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Obrigado. Fico contente por ter gostado.
Jose Vaz Carneiro | 2022-02-21
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A perda de entes queridos é Dor.
Mas como diz Murakami a Dor é inevitável, mas o Sofrimento é opcional.
A ausência da Morte é o horror absoluto. Vide o Judeu Errante.
É como os republicanos na Guerra Civil espanhola, berremos: Viva la Muerte
Manuela | 2022-05-25
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É dificil separar a dor do sofrimento…
Adelino | 2022-02-23
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Poético